Por Siro Darlan –

Série Presídios XXVII.

“A realidade é infinitamente mais diversa se comparada a qualquer conclusão – mesmo as mais sutis – a que pode chegar o pensamento abstrato, e não suporta discriminações grosseiras e vultuosas. A realidade tende à fragmentação.”

Fiódor Dostoievski, Recordações da Casa dos mortos.

Fora vítima nas duas ocasiões em que contraíra tuberculose, sofrendo omissão de socorro e falta de tratamento adequado por mais de um ano e meio na primeira ocasião – tempo suficiente para ir a óbito. Essa certamente fora uma das inúmeras vezes em que a SEAP tentou matá-lo na prisão. Mas Petrus sobrevivera para dar testemunho do que passou. Era por natureza um sobrevivente. Ás vezes pensa que, fora capaz de sobreviver apenas para ser o veículo da verdade que clamava para ser ouvida.

Fora vítima por ter trabalhado de graça por alguns anos, sem receber um centavo para isso, enquanto algum safado fardado recebia em seu lugar ou seu dinheiro era desviado para a conta de algum engravatado autorizado pelo Estado a roubar sob uma fantasia de legalidade.

“E não é de admirar, porque o próprio Satanás se transforma em anjo de luz.

Não é muito, pois, que os seus próprios ministros se transformem em ministros de justiça; e o fim deles será conforme as suas obras”.

(1 Coríntios 11. 14,15)

Fora vítima por se ver obrigado a ter que fazer quase todo tipo de correrias, lícitas e ilícitas na cadeia para ter o que comer e o que vestir, quando o Estado deveria suprir essas necessidades, se a Lei de Execução Penal não tivesse sido feita de pano de chão pela SEAP, exceto a parte que diz respeito aos deveres e disciplina que o preso deve ter. Aliás, essa testemunha afirma que, em hipótese alguma, em nenhuma ocasião, em cerca de vinte anos preso, jamais viu a SEAP ou Polinter (na época das carceragens em delegacia) fornecer um barbeador sequer a qualquer preso, perto ou distante, apesar do fato de exigir que todo interno ande barbeado. E se por acaso algum preso alegar que não tem dinheiro para comprar um barbeador na cantina, é “esculachado”, geralmente é chamado de parasita ou coisa semelhante, e dele se exige que faça alguma correria, ou seja, preste algum serviço ou comércio que gere renda para suprir as próprias necessidades para deixar de ser um “parasita”. Ficando subentendido que deve se virar fazendo o que estiver ao seu alcance para ter dinheiro para garantir sua higiene pessoal, do contrário é ameaçado de tomar parte disciplinar por indisciplina, descumprimento da ordem recebida ou coisa semelhante.

É desse modo que a SEAP obriga uma multidão de presos a virar mendicante, pedinte ou traficante na cadeia, para ganhar trinta reais por carga vendida. Esse é o Sistema corruptor que deve ser esmagado e varrido para fora da Terra.

Fora vítima por cumprir seu regime semiaberto concedido por autoridade judiciária, em uma penitenciária de segurança máxima, literalmente uma semiaberta em regime fechado – quando o Código Penal Brasileiro diz em seu art.33, parágrafo 1º, alíneas ‘A’ e ‘B’, que: o regime semiaberto deve ser cumprido em Colônia Agrícola, Industrial ou similar. Além de não oferecer nenhuma espécie de curso profissionalizante – exceto pago, que qualquer preso pode fazer. Portanto não é exclusividade do regime semiaberto. O único diferencial verdadeiro, entre os regimes fechado e semiaberto em Bangu VI, são as saídas temporárias. Em todos os outros aspectos é regime fechado, tranca dura, onde não se oferece uma vaga sequer, para o desgraçado do preso trabalhar extramuros, nem como coveiro de cemitério.

Mas o que impede que na maldita semiaberta em regime fechado na Penitenciária Lemos Brito, se ofereça cursos profissionalizantes gratuitos, para os internos ociosos e ávidos por aprender uma profissão? A reposta é simples: negligência, má vontade, desvio de recursos e a clara intenção de oprimir o máximo possível, presos que na sua maioria deveriam estar saindo não só nas sete saídas temporárias por ano, mas saindo para estudar e trabalhar em todos os dias úteis da semana.

Fica claro que a SEAP deseja que todo desgraçado que passa por ela seja “hóspede” para sempre, ou seja, se veja sem recursos e sem opções, permanecendo na criminalidade até voltar para os braços abomináveis da Grande Prostituta Babilônia que se assenta sobre o Rio de Janeiro. Enquanto o dinheiro que recebe do Estado criminoso, para projetos de ressocialização – se na verdade existe algum -, está na conta de homens como o ex Secretário que apertou a mão do traficante Abelha.

Vista do Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu. (Foto: Divulgação)

Fora, portanto, vítima de um Estado criminoso que, se não tem condições de cumprir o que lei determina (Colônia Agrícola, Industrial ou similar), deveria soltar os presos mediante monitoramento eletrônico, não mantê-los em regime mais gravoso do que o determinado por autoridade judiciária.

Mas quem é que vai pagar por tudo isso? Quem vai compensá-lo por todos os danos irreparáveis que sofreu? O Ministério Público, conivente com todas essas ilegalidades? Que visita as cadeias para preparar seus relatórios dizendo que tudo passa bem?

Fora vítima, todas as vezes que dormiu com fome por não ter o que comer, por receber uma alimentação deficiente; todas as vezes que teve que beber um “café” servido em bombonas (garrafas térmicas), que antes fora mexido com um pedaço de pau imundo que algum filho da puta pegou ali no chão, para “verificar” se não havia nada dentro, além da água rala e sem açúcar que continha.

Fora vítima todas as vezes que sofrera de dor de dente ou outra dor qualquer, sem remédio para amenizá-la, e lhe fora negada assistência médica ou odontológica que só havia na UPA, onde aqueles que se arriscavam a ir, eram amontoados como galinhas dentro de uma caixa, no carro do SOE, e depois em uma cela imunda (conhecida como maracanã), onde eram obrigados a disputar espaço com presos de todas as facções. Muitos cuspindo sangue e tossindo em todas as direções, alguns quase mortos. De modo que era preferível a dor de dente (ou pé quebrado) a ficar em ambiente fechado com presos tuberculosos em estágio avançado, sendo obrigado a respirar vírus e bactérias que existem ali em maior quantidade do que o ar.

Tudo o que o Estado lhe dera fora ódio, obrigando-o a ficar por alguns anos na ociosidade total, por vezes privado até de ler livros, impedido de frequentar a Unidade Escolar Prisional. Ocasiões em que a oficina do diabo trabalhava a todo vapor, fazendo um interno a princípio pacífico, imaginar nos seus mínimos detalhes como produzir um explosivo capaz de dar cabo de cerca de vinte homens de uma só vez, usando para isso coisas simples como pólvora, um galão de duzentos litros como os usados para armazenar lavagem na cadeia, pedaços de vergalhão três oitavos, fio e uma resistência de chuveiro elétrico. Ou iniciando, avançando e se aprofundando em ciências ocultas – quando tinha acesso a esse tipo de literatura -, até adquirir conhecimento suficiente para tirar a vida de alguém por esses meios. Conhecimento esse que até o presente decidiu não usar, mas que poderá fazê-lo caso se veja obrigado a isso.

Ninguém passa pelo Sistema e sai ileso. Aqueles que passaram no Sistema, certamente tiveram seu corpo e sua alma marcados para sempre, isso não pode ser apagado, e Petrus não foi exceção a essa regra.

Se gentileza gera gentileza, os crimes da SEAP contra seus internos e familiares dos mesmos, gera ódio e desejo de vingança”.   

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17- O Estado Criminoso III – por Siro Darlan 

18- O Estado Criminoso IV – por Siro Darlan

19- O Estado Criminoso V – por Siro Darlan 

20- O Estado Criminoso VI – por Siro Darlan 

21- O Estado Criminoso VII – por Siro Darlan 

22- O Estado Criminoso VIII – por Siro Darlan 

23- SEAP no banco dos réus – por Siro Darlan 

24- Homicídios – por Siro Darlan 

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26- Trabalho em condições análogas à escravidão / prevaricação / omissão de socorro – por Siro Darlan

SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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