Por Siro Darlan –
Série Presídios (3).
Claudio Piúma, ‘o Gaúcho’: “Sou caixa preta do crime, ex chefe dos chefes do comando vermelho estou com 60 anos, sou a estória real de um sistema porco, sou um herói da resistência”. Cumpriu 27 anos de prisão e está em liberdade ajudando sua comunidade.
O sistema de justiça criminal, enquanto mero distribuidor de sofrimento, não é tolerável. Nem mesmo infligir dor ao autor de um massacre é útil para a melhoria da sociedade: ao sangue das vítimas acrescentar-se-ia unicamente um sofrimento a mais – o do autor condenado por múltiplos homicídios. Por mais que possa ser justo reagir ao mal com outro mal, parece-nos que essa é, hoje, uma questão privada de sentido, visto que a pena retributiva remete à ideia de merecimento de pena, improponível em um Estado laico.
A história de Claudio Piúma é um exemplo de superação e ele nos conta nesse capítulo. Vamos dar voz a quem passou e conhece na pele esse sistema de dor e sofrimento.
“Eu sou Cláudio Piúma, nasci numa cidade de Rio Grande do Sul, uma pequena cidadezinha lá no pé do mapa do Estado do Rio Grande do Sul do nosso país Brasil. Lá nasci e fui me criando sem pai sem mãe apenas pelos meus avós, minha mãe trabalhava em casa de família como empregada doméstica, não tinha como nos criar. Éramos 4 irmãos, 2 de um pai e 2 de outros dois país diferentes. Então éramos muito pobres mais pobres mesmos sem nada. A casa dos meus avós a um quilômetro de distância, dava pra ver quem estava dentro pelas frestas que havia no casa. Quando chovia muito o mar enchia e dava aquela enchente que levava todos aquele poucos que nós tínhamos, só não levava a cama porque era de ferro e pelo peso de quatro pessoas que ali dormia, que era eu meu irmão mais velho e meus avós para que as cobertas não caíssem na água a gente tinha que pegar 4 cadeiras, que também eram de ferro e encostar as costas delas na beirada da cama para as cobertas não caírem, era horrível.
Pois assim fui me criando vendo o tempo passar e passando por todo este sofrimento da nossa família e o nosso. Um dia minha mãe me pegou pela mão e me levou lá onde morava meu pai que não havia me registrado aí ele um negro forte olhou bem pra mim eu deveria ter uns 8 anos de idade e perguntou: você quer morar comigo ou com sua mãe? Eu nunca tinha visto aquele cara que minha mãe dizia ser meu pai eu olhei pra ele e falei, quero ficar com minha mãe, sendo que eu não morava com ela e sim com meus avós. Então fomos embora e minha jornada do cão começou naquele instante.
Ganhei as ruas e comecei a luta pela sobrevivência pedindo comida nas casas com uma latinha desta de leite ninho. Uns davam outros me chamavam de negrinho sujo, e assim fui me criando tomando conta de carros na frente do supermercado Guanabara Carregando carinho de madames na feira até passar a aprender a roubar chocolates no mercado. De chocolate aprendi a roubar a carne, que minha avó me dava o dinheiro pra comprar quando ela tinha, e aí eu ficava com o dinheiro passei também a roubar galinhas, porcos, coelhos, carneiros para comer eu e mais um grupo de crianças.
Entrávamos nos restaurantes e pensões comíamos e saiamos correndo entrávamos nas churrascarias pegávamos um espeto com carne e saiamos correndo, só que nesta a idade ia chegando. E um belo dia meus avós pegaram eu e meu irmão, e nos colocou em um colégio externo. Lá era o terror eram jovens estuprados sofrendo horrores, mas como era eu e meu irmão a gente se protegia mais menos.
Naquela época já era o terror, pois era a época da ditadura, e o diretor era um cara do exército. Ele não era mal não mais quem comandava o sistema lá eram os internados maiores, aí os grupos deles batiam nas crianças estupravam, maltratavam os menores. Só Deus sabe o quanto sofríamos, até que eu e meu irmão resolvemos fugir, pois lá era uma tortura do cão então eu e meu irmão fugimos chegamos em casa. Minha avó e meu avô abriram aborta e olharam pra nós dois e falaram: o que vocês estão fazendo aqui? Nós ao mesmo tempo falamos que havíamos fugido daquele lugar e não iríamos voltar porque estávamos sofrendo muito lá. Aí eles falaram: vocês não tem jeito mesmo, seja o que Deus quiser! Começava minha jornada no crime então fui para as ruas e já com uns 14 anos comecei a roubar nas casas.
Minha mãe arrumou pra mim estudar à noite num bairro muito violento chamado” Cedro”, pior ainda, passei a conhecer uns caras que já eram brabos na vida do crime fui morar na casa da irmã de um deles. Passei a ser um adolescente muito problemático, me tornei um dos maiores ladrões de mansões da cidade. Com 15 anos eu era o terror! Passei a conhecer o pau de arara mesmo com esta idade era radicalmente torturado pela polícia civil. Mas quanto mais eu apanhava mais eu ficava com ódio e lembro que um dia eu quase vim a óbito de tanto apanhar e tomar choque pendurado no pau de arara fiquei todo roxo e os policiais comendo me mandaram embora pra casa.”
Claudio Piúma ficou preso 27 anos e passou pelos presídios Ari Franco, em Água Santa, Hélio Gomes, Esmeraldino Bandeira, Milton Dias Moreira, Bangu 1, Bangu 2, Bangu 3, Bangu 4, Bangu 5, Plácido de Sá Carvalho, Vicente Piragibe, Edgar Costa, em Niterói, Presídio Cirieiro em Niterói, Ilha Grande, além do Presídio Central de Santos, Litoral de São Paulo.
Hoje, em liberdade, Claudio dirige o Projeto Multiplicação Social, onde oferece à comunidade do Complexo de Israel, em parada de Lucas artes marciais, dança, zumba, teatro áudio visual, mediação de conflitos e ajuda jovens a se ressocializar através de práticas esportivas. Convence ainda jovens em dívida com a justiça a se entregar e cumprir sua pena. E distribui cestas básicas, remédios enfim uma ajuda humanitária aos mais necessitados da comunidade.
Claudio pede que quem quiser ajudar pode entrar em contato, visitar o projeto e auxiliar nessa tarefa de distribuição de bens e direitos.
No livro Vigiar e Punir, Michel Foucault nos mostra como se deu a passagem das técnicas punitivas que se dirigiam ao sofrimento do corpo para as tecnologias que se dirigiam à alma, que resultou nesse atual sistema de torturas e enterro de mortos vivos nas cadeias brasileiras. A partir daí, era a certeza de ser punido e não mais apenas a crueldade das penas até então aplicadas. O castigo, dirá Foucault, passa da arte de causar sofrimentos insuportáveis à uma economia dos direitos suspensos, e não apenas aqueles que estão na lei, a privação da liberdade, mas de todos os direitos de um ser humano.
A ideia difundida de que “bandido bom é bandido morto”, que os direitos humanos só serve pra “proteger bandidos” ajuda a continuarmos a não reconhecer a humanidade em parte desvalida da sociedade. É preciso conscientizar aos profissionais e cidadãos para as violências praticadas pelo Estado, com a conivência dos organismos de fiscalização, e para a quilo que se apresenta a todos nós como sendo da ordem do intolerável: as torturas, as extorsões, as humilhações porque passam os presos e seus familiares, as segregações.
Que se ponha um fim a estas violências, e que não se somem outras, porventura impetradas por nossa omissão e pelo poder técnico.
Leia também:
1- A roubada dos presídios federais – por Siro Darlan e Raphael Montenegro
2- Para que servem os presídios? – por Siro Darlan
SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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