Por Siro Darlan –
Série Presídios XVI.
O dia que a casa caiu. A certeza de um futuro incerto. A tristeza tomando conta do meu ser. Lágrimas, choro, medo e saudades. A despedida de um até breve, sem data marcada para o reencontro. Coração em pedaços, todos os sentimentos e solidez construídas durante toda uma vida, ruindo diante de mim como a reação em cadeia de peças de dominó. O que me resta? Apenas a esperança de no retorno encontrar as peças espalhadas e colocá-las em seu devido lugar.
Maxwel Borges. No livro Corpo preso, mente livre. Versos de um detento.
Na primeira noite, o jovem que se chamava Petrus prestou muitas horas de depoimento, passou por dezenas de reconhecimentos – procedimento repetitivo onde ficava atrás de um vidro escuro ao lado de outros presos para eventualmente ser reconhecido por alguma vítima. Nessa mesma noite foi espancado por um policial negro, um homem muito forte que tentava fazê-lo confessar o assassinato do Major que de fato havia sido morto pela quadrilha que pertencia, mas em a sua participação, já que na data fatídica era aniversário de sua namorada, e por conta disso recusara participar de um sequestro naquele dia, preferindo ir fazer compras no Hipermercado Extra de Alcântara, para a festa que fariam no dia seguinte. Por isso, mesmo sob tortura, terror psicológico, espancamento e toda a espécie de coação, não confessou um crime que não cometera. Não podia fazer uma coisa dessas, se tivesse participado mesmo que indiretamente da morte do Major, teria facilmente confessado, sem a necessidade de ser submetido a todas aquelas atrocidades. Mas confessar algo que não fez era uma coisa que não podia admitir. Mesmo assim foi acusado por esse crime e apresentado à imprensa como um dos autores do assassinato do Major, homem que se estivesse sob seu poder de decisão de vida ou de morte, estaria vivo até o dia de hoje.
Mas a vida daquele homem nunca estivera sob a mira de sua arma, sua vida nunca estivera sob seu poder, apesar disso, foi condenado por esse crime cerca de cinco anos depois à trinta e cinco anos de prisão pela então Magistrada Patricia Lorival Acioli, depois de um tribunal do júri intimidado pela mesma – diria mesmo manipulado, uma vez que se ignorou o depoimento de dois delegados, um da Divisão Anti Sequestro e outro da 74 DP Alcântara, que foram unânimes em dizer que as investigações os levavam a crer que o Petrus não se encontrava no dia no local do crime mas que poderia ter sido o mandante do mesmo – afirmação sem base probatória. E aceitou o depoimento de uma testemunha que afirmou que: “em uma rua escura e deserta, em uma noite em que estava faltando energia elétrica, a luz da lua iluminou a silhueta de três homens que supostamente se encontravam próximos a um carro – supostamente o carro do Major – e por essa silhueta essa testemunha reconheceu o Petrus como um dos homens que teriam sido os autores da morte do Major.
“A falsa testemunha não ficará impune; e o que profere mentiras perecerá” (Provérbios 19.9)
Outras sentenças se somaram para totalizar 124 (cento e vinte e quatro) anos de pena em regime inicialmente fechado, mas isso foi acontecendo ao longo dos cinco primeiros anos que passou preso.
Na DAS, Petrus esteve por apenas um mês e meio, tempo suficiente para conhecer pessoalmente o homem que rendeu o jornalista Tim Lopes, ao avistar um objeto suspeito em sua roupa – uma microcâmera escondida – e em seguida conduzi-lo até o alto da Vila Cruzeiro, onde o tribunal do tráfico liderado por um homem chamado Ratinho, na ausência do Elias Maluco que, estava viajando na ocasião, sentenciou o jornalista à morte e depois queimou o seu corpo dentro de um latão de lixo cheio de gasolina, de modo que todos os ossos foram completamente carbonizados. A ordem para a execução foi do traficante Ratinho, mas quem erroneamente a mídia responsabilizou pelo assassinato do Tim Lopes foi o traficante Elias Maluco – o bode expiatório que anos depois viria supostamente a se suicidar e um presídio federal.
Também foi lá na DAS que Petrus conheceu um bandido que pertencia a facção ADA (Amigo Dos Amigos) e por ele foi convidado a se tornar um integrante da mesma, para (em suas palavras) “tirar a sua cadeia tranquilo” no presídio Milton Dias Moreira, localizado em Frei Caneca e conhecido como Setor ‘B’. Petrus não demorou a aceitar a proposta. Precisou apenas receber a aprovação de outro bandido chamado Ítalo, da comunidade da Vila Do João no Complexo da Maré, que havia sido preso por sequestro, mas integrava a quadrilha do Linho, o bandido mais procurado do Rio de Janeiro na época.
Ao declarar displicentemente em sua cela sua decisão de fazer parte da facção ADA, Petrus foi alvo de uma espécie de perseguição por parte de um jogador de futebol do Serro Porteño, que atendia pelo vulgo de Gilson da Doze, e havia sido preso por extorsão. Gilson era simpatizante do Comando Vermelho, apesar de ter tomado uma surra dos traficantes do morro da Formiga a mando de uma atriz da Globo que fazia um papel subalterno na novela Uga Uga, que era exibida na época. Fora essa mesma mulher que acusara Gilson de extorsão, da qual ele se dizia inocente, e por isso se encontrava preso.
Não demorou para que Petrus se explodisse com Gilson na cela por se ver como alvo do mesmo em diversas circunstâncias, ocasião em que o xingou de tudo quanto é nome, ofendendo sua moral de homem na frente dos outros presos e ficou aguardando uma reação do ex-jogador, que ao se levantar recebeu uma ordem direta de outro preso para ficar onde estava e calado, o que Gilson acatou na hora.
Nenhum outro incidente ocorrido nesse período é digno de nota, senão o fato de saber durante a visita de sua companheira que seu pai a havia agredido fisicamente por causa de uma disputa pelos móveis que pertenciam a Petrus, sua companheira e sua irmã, que moravam juntos antes de sua prisão. Essa notícia deixou Petrus transtornado na cadeia, com vontade de matar seu próprio pai por ter agredido sua mulher, uma coisa que ele não podia admitir de jeito nenhum. Por causa disso, depois de pensar muitas maneiras de se vingar de seu pai, Petrus resolveu escrever uma carta para um amigo que estava na rua (e logo se tornaria o marido de sua irmã) pedindo que fosse até a casa de seu pai e tocasse fogo na casa com ele dentro. Mas se por providência divina ou não, essa carta nunca chegou a ser enviada para seu cunhado, pois logo depois da notícia infeliz que o deixara transtornado, Petrus fora transferido para a Polínter Centro, localizada na Praça Mauá – o inferno na Terra, um lugar onde a presença da morte era palpável e a vida era vivida por um fio e não se tinha certeza se sobreviveria até o dia seguinte.
Na Polinter a divisão de facção era feita logo na chegada, se o preso declarasse não ter facção era enviado para o TCP (Terceiro Comando Puro), ou para o seguro, que é onde os presos que não podem viver nas facções ficavam, como os estupradores por exemplo. Ao chegar Petrus se declaro ADA e foi destinado a cela 9, um a das três celas da facção. Havia outras três celas destinadas ao TCP, oito ao Comando vermelho e uma para os P.O (os policiais presos que tomavam conta da cadeia fazendo o confere dos outros presos uma vez por dia, abrindo e fechando cadeados etc.), além de outras celas especiais, destinadas aos presos que podiam pagar para poder ter acesso a uma geladeira, televisão, poder dormir em uma “cama”, sem a superlotação das outras celas, que chegava a cerca de cento e vinte presos num espaço com apenas quatorze vagas ou camas de concreto – as comarcas.
Leia também:
1- A roubada dos presídios federais – por Siro Darlan e Raphael Montenegro
2- Para que servem os presídios? – por Siro Darlan
3- Como transformar seres humanos em seres sem dignidade humana – por Siro Darlan
4- A guerra aos povos pobres e negros com nome de “guerra às drogas” – por Siro Darlan
5- O dia que a casa caiu – por Siro Darlan
6- Isso é uma vergonha, diz o Ministro Gilmar Mendes – por Siro Darlan
7- “Bandido bom é bandido morto” – por Siro Darlan
8- A pena não pode passar da pessoa condenada – por Siro Darlan
9- O Dia do Detento – por Siro Darlan
10- Para além das prisões – por Siro Darlan
11- Justiça Restaurativa – por Siro Darlan
12 – Alternativas à privação da liberdade – por Siro Darlan
13- Quem nasceu primeiro o cidadão infrator ou o Estado criminoso? – por Siro Darlan
14- A ponte para a liberdade – por Siro Darlan
15- O Estado Criminoso – por Siro Darlan
SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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