Por Siro Darlan –

Série Presídios XXVI.

“Nenhum homem vivo subsiste sem um objetivo e a aspiração de atingi-lo. Depois de perder o objetivo e a esperança, o desgosto com frequência faz o homem transformar-se num monstro…”

Fiódor Dostoievski, Recordações da Casa dos mortos.

Este testemunho não seria completo se deixasse de relatar o triste destino de um preso chamado Leo da comunidade do Guarda e Rato, que no ano de 2006 trabalhava retirando os latões de lavagem das quatorze galerias existentes em Bangu IV. Leo era um homem negro, de forte compleição física, costumava malhar com pesos improvisados, feitos de garrafas pet cheias de água. Mas como todos os outros, trabalhava sem luvas, sem botas, e sem receber absolutamente nada pelo trabalho exercido – a Fundação Santa Cabrini só passou a pagar os presos no ano de 2008, depois de um interno chamado Arthur, ter denunciado insistentemente durante um período superior a um ano, o crime de desvio de dinheiro que deveria servir para pagar os internos classificados; denúncia que remetia diretamente a (Secretária?) Benedita da Silva, que segundo ele, foi quem intercedeu em conformidade com a lei, em favor dos presos explorados.

Naquela época a infestação de ratos era obscena. Por volta das 16:00 horas, após o confere dos presos e dos mesmos serem trancados em suas celas dentro das galerias, se passava diante de todos um verdadeiro festival de ratos, que não se intimidavam com a luz do sol, nem com o barulho dos presos. Sabe-se que a população de ratos é proporcional a quantidade de alimentos que pode obter em determinado local. Como em Bangu IV, assim como nas outras Penitenciárias a comida servida era péssima, a quantidade de lavagem separada em latões de duzentos litros era espantosa, cerca de quatro latões por semana em cada uma das quatorze galerias, o que passava disso era jogado no lixo por falta de galões de lavagem. Por isso a população de ratos era proporcional a essa fartura de “comida”, ou seja, lavagem que os presos se recusavam a comer, aproveitando somente cerca de 10% da refeição servida – isto se mantém até a atualidade (2023).

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CNJ/Divulgação

Esse era o quadro, consequentemente muitos adoeciam, sofriam descaso ou omissão de socorro e faleciam na cadeia depois de 72 horas gritando de dor, vomitando e definhando até o óbito inevitável. Infelizmente Leo fora uma dessas vítimas. Ao se ver doente, pediu emergência médica, foi conduzido à UPA (ou o que havia antes dela), onde lhe deram Benzetacil e Dipirona e lhe despacharam de volta para morrer na Penitenciária Jonas Lopes de Carvalho, de leptospirose apenas 24 horas depois de ter ido na UPA. Passara sua última noite de vida gritando de dor, de modo que, da galeria onde Petrus morava, podia ouvir seus gritos na galeria ao lado, onde estavam os trabalhadores escravos da SEAP. Pôde de fato ouvi-lo através de um buraco na parede chamado de satélite pelos presos, por onde tentou lhe prestar alguma ajuda oferecendo-lhe remédios que foram recusados, pois Leo havia ganhado Dipirona sódica como mencionado, quando de sua ida à UPA – o que não lhe serviu de nada, nem como cura da maldita doença, nem como analgésico capaz de amenizar sua dor.

Ao saber de sua morte, Petrus pela primeira e talvez única vez na vida, fez uma oração pelos mortos, nesse caso pela alma de um amigo morto e condições miseráveis. Só o fizera, porque naquela época encontrava-se fortemente inclinado a crença espírita kardecista que vinha estudando a fundo na ocasião. E se o leitor não tiver por mentiroso este sobrevivente e tomar sua palavra por verdadeira: na mesma noite em que orou pela alma de Leo, antes de ir dormir, o espírito do mesmo lhe apareceu em sonho para lhe agradecer – um agradecimento sem palavras, mas que podia ser sentido claramente.

“Filha da Babilônia [SEAP], que hás de ser destruída, feliz aquele que te der o pago do mal que nos fizeste.

Feliz aquele que pegar teus filhos e esmagá-los contra a pedra”

(Salmo 137.8,9)

Vítima da SEAP

Mas em que sentido Petrus fora vítima da SEAP?

Fora vítima por ter trabalhado cerca de onze anos para ter somente dois anos remidos – a remição por trabalho é calculada em razão de três por um, ou seja, a cada três dias de trabalho, um é remido, o que teoricamente daria um ano remido a cada três trabalhados. Porém, até nisso a corja de vagabundos fardados que constituem a SEAP consegue roubar o preso.

Fora vítima por ter sido em duas ocasiões distintas, uma no ano de 2005 e outra no ano de 2014, impedido por cinco meses de receber a visita de sua companheira. Na primeira ocasião a SEAP reteve a carteirinha de visitante de sua companheira o máximo que pôde, intentando fazê-la desistir de ir visitá-lo. Na segunda ocasião, demorou mais cinco meses para substituir a carteirinha de visitação que era de papel plastificado, por uma de cartão magnético. Privando-o no total de receber visita durante dez meses, ou seja, quase uma ano, sem haver cometido falta alguma para isso. Sem nenhum motivo justificável. Por esse motivo, deseja uma morte lenta e dolorosa para todos os envolvidos.

Fora vítima por ter perdido o contato com sua irmã por oito anos, a despeito do fato dos dois trocarem correspondência com frequência. Porém, com uma frequência ainda maior, algum verme desgraçado, desviava ou retinha, tanto as correspondências que saíam, como as que chegavam. Até que ambos desistiram de escrever, havendo assim uma ruptura de oito anos na relação entre irmãos que mantinham por carta, até serem impedidos de continuar pela (mil vezes maldita) SEAP que, queria isolar Petrus do contato com sua família.

Fora vítima centenas de vezes em que fora impedido de receber seu sedex contendo artigos de necessidade básica que sua companheira lhe mandava. Simplesmente porque o infeliz que ocupava a chefia do Setor de Bens e Valores, mandava seus sedex de volta para o remetente. Isso mesmo antes de se exigir do preso cadastro para poder receber sedex. Novamente não havia nenhum motivo justificável para isso. O motivo podia ser que a mulher do infeliz dormiu de calça ou outro motivo qualquer, que fez seu estado de espírito estar propenso a impedir Petrus de ser assistido por sua família naquilo que o Estado criminoso deixava de fazê-lo.

Houve um agente em específico chamado Augusto Almeida, conhecido pelo nome de Seu Almeida. Um animal fardado cujos crimes superavam a muitos que estavam presos. Era um homem negro na faixa dos trinta e cinco anos, que ao estar à frente do Setor Bens e Valores, literalmente impediu Petrus de receber sedex por um ano inteiro, sem nenhum motivo justificável, exceto talvez o fato do mesmo reivindicar seus direitos junto aos Poderes Públicos. O mesmo agente maldito, certa vez lhe roubou um par de chinelos que havia comprado na cantina da Unidade (Bangu IV), obrigando-o a andar descalço da parte administrativa da cadeia onde ficava a enfermaria, serviço social, dentista, etc., até seu setor de trabalho. Isso em uma época em que imperava uma multidão de ratos na cadeia, o que causou a morte de vários internos por leptospirose. Portanto, o desejo daquele que sofreu estas coisas é de que o Sr. Augusto Almeida padeça de um câncer na garganta e o espírito da morte o visite todas as noites miseráveis que lhe restarem nessa terra até finalmente levar sua alma para as profundezas.

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SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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