Por Siro Darlan –
Série Presídios XVIII.
“O próprio detento sabe que é um detento, um réprobo, e conhece o seu lugar perante um superior; mas nenhuma marca de açoite, nenhum grilhão o faz esquecer que é um homem. E como é efetivamente um homem, logo, é preciso que receba um tratamento humano.”
Fiódor Dostoievsky, Recordações da Casa dos Mortos
Já na chagada os presos eram espancados se nenhum motivo justificável, era agressão gratuita, recepção de boas vindas. Quem ousava reivindicar ou apelar para os Direitos Humanos era apresentado a uma madeira maciça e pesada, de grande comprimento, chamada “direitos humanos”, e com ela era espancado até desmaiar. Houve preso que ficou tetraplégico com esse tipo de agressão na Água Santa, outros como um oriental (chinês ou japonês) que teve o seu nome muito divulgado na época, foram mortos a pauladas pelos digníssimos agentes do Estado Criminoso. Por causa da ampla divulgação desse caso na mídia os direitos Humanos (os verdadeiros órgãos de defesa dos Direitos Humanos Universais) estavam em cima, por isso quando Petrus chegou em Água Santa não foi recebido com o ritual do espancamento gratuito costumeiro, tomou apenas um “pescoção” e ouviu o maior espancador daquele lugar, um homem negro, na faixa dos quarenta anos chamado JOSUEL, dizer que não tinha medo de morrer e que já havia batido na cara de muitos donos de boca de fumo, inclusive do morro da Mangueira – foi esse o exemplo citado.
Não se sabe se por sorte ou por azar, Petrus passara só um mês naquele calabouço, tempo suficiente para ver o cantor Belo perambulando pelos corredores que conduziam ao campo de futebol que ficava na superfície e era usado para banho de sol uma vez na semana. Lá o cantor Belo era chamado apenas de Marcelo, tinha engordado bastante e seu cabelo estava totalmente preto. Se dizia que, pagou uma alta quantia para os presos de todas as facções tirarem das paredes as fotos nuas de Viviane Araújo, pois ela era sua mulher que lhe visitava na cadeia.
Em 2005 Petrus fora transferido para o Bangu IV no Complexo Penitenciário de Gericinó, onde permaneceria a maior parte de sua vida até seus 38 anos. Esteve preso lá em regime fechado de 2005 a 2018, quando foi transferido para a Penitenciária Lemos Brito. Nessa ocasião o Terceiro Comando havia crescido muito numérica e financeiramente, por isso comprara a cadeia de Bangu IV (Jonas Lopes de Carvalho), onde até 2018 esteve a facção ADA, que nesse período perdera muitas favelas para o CV e o TCP, não através de guerras do tráfico, mas através de acordos bilaterais de lideranças do tráfico que acharam por bem mudar de bandeira.
No ano de sua chegada (2005), chegou a pensar ter sido abandonado por sua companheira, mas isso só de fato ocorreria no ano de 2015, dez anos depois de sua chega aquele lugar. Inicialmente ficara cinco meses sem visita por causa da SEAP que reteve ao máximo a carteirinha de visitante que sua companheira tinha feito, até ela perder o controle e perguntar aos berros se “eles tinham matado ele lá dentro”. Nessa ocasião a carteirinha de visitante lhe fora entregue e logo, Petrus que não sabia de nada, tivera sua primeira visita com ódio de sua companheira que, pensava tê-lo abandonado ou deixado de ir vê-lo todo aquele tempo por conta própria e de livre escolha – mas na verdade era a maldita SEAP tentando tirar dele a única coisa que havia lhe restado. Mas logo tudo se esclareceu e os dois ficaram bem. No início as visitas que recebia de sua companheira eram meio esporádicas ou muito espaçadas, pois ela estava desempregada ou passava de um emprego para outro muito rapidamente ou fazia bico para arrumar algum trocado como faxineira ou empregada doméstica. Cerca de um ano depois a situação se regularizou, a companheira de Petrus conseguira um emprego indicado pela esposa de outro preso, e suas visitas passaram a ser semanais, na verdade só visitas íntimas aos domingos, e houve um tempo de estabilidade.
Passado o ódio inicial e abrandado um pouco a revolta por sua infeliz condição, Petrus fora morar numa galeria evangélica, onde permaneceu por alguns anos e então se dedicara como nunca antes em sua vida à leitura e estudos intensos acerca de todos os temas associados a religião, história, espiritualidade e múltiplos outros temas que achara relevantes para o seu intelecto.
No final do ano de 2007 Petrus fora convidado para trabalhar na escola da Unidade. Dessa vez aceitou, já havia recusado várias vezes trabalhos que lhe ofereceram para remir sua pena. Na verdade não acreditava que o fato de trabalhar fosse lhe ajudar em alguma coisa, no que diz respeito a diminuir sua pena (que chegou a 124 anos), ou que o fato de diminuir alguns anos ou meses no total de sua pena, fosse lhe ajudar a ir embora mais rápido – sua conclusão era de que não fazia diferença trabalhar ou não. Mas no final do ano de 2007 resolveu aceitara a proposta de trabalhar na cozinha da escola para fazer parte de um projeto de produção da merenda escolar naquela Unidade, na própria escola prisional. E assim foi ensinado e treinado para fazer pizza, bolo, cavaca ou cachorro quente de forno (em ocasiões especiais), para uma média de cinquenta alunos em cada turno.
Trabalhou nessa função até ser impedido de continuar, por ordem da Secretaria de Educação que determinou que a merenda dos alunos nas unidades prisionais deveria ser fria (industrializada), e não produzida em cozinha experimental etc. Por conta disso, Petrus começou a exercer outras funções como auxiliar na administração da biblioteca e em todo trabalho de informática do serviço de Secretária escolar, bem como serviços gerais.
Passou anos assim, trabalhando, lendo livros, recebendo visita semanal regular, sem problemas com vícios, sem contrair nenhuma espécie de dívida… Se tornara como parte da paisagem daquele lugar, como a árvore que você vê toda vez sai ou chega em casa, mas não percebe a presença dela. Se tornara quase invisível, totalmente adaptado ao ambiente. E isso em parte era bom para ele, não ser notado, não chamar a atenção para si. Alguns invejavam sua ocupação, queriam o seu lugar, mas era só isso. Se manteve longe de problemas por muito tempo.
Em 2015 foi impedido de continuar a trabalhar por causa de outro interno que trabalhava na escola, e além de ter sido pego pela segunda vez com perfil no facebook, guardava drogas e outros artigos proibidos na escola, como tênis de marca, roupas e chinelos Kenner. Até aquela ocasião, Petrus nunca tinha se envolvido com nenhuma daquelas coisas. De facebook só tinha ouvido falar; as únicas drogas que já havia usado na cadeia eram maconha e haxixe, além de cachaça artesanal produzida na própria cadeia, geralmente em ocasiões especiais como natal, ano novo ou outra data festiva qualquer. Mas nunca havia vendido droga alguma, nem na cadeia nem na rua. Também nunca havia aceitado guardar droga para ninguém, rejeitando o dinheiro que poderia ganhar fazendo isso. As poucas vezes que tinha fumado maconha até aquele momento, tinha sido em períodos de afastamento da igreja, onde passou alguns anos de sua vida, inclusive em uma galeria evangélica, enquanto existiu uma ou a metade de uma galeria dessas no Bangu IV. Por isso não lhe pediam muito esse tipo de coisa, portanto restava ao outro preso que trabalhava na escola todo o serviço sujo, mas que Marcelo Schneider exercia voluntariamente, sem ser obrigado ou coagido a isso e ainda era remunerado. Por isso quando Schneider rodou, Petrus não estava envolvido em nada, mas mesmo assim foi parar no isolamento, e posteriormente acusado de falta grave por “ao ser revistado ter sido pego com um chip de telefone em seu bolso”. Essa tinha sido a acusação que em nada tinha a ver com a realidade, que na verdade tratava-se de u cartão de memória que Schneider costumava usar na escola com conhecimento do diretor da escola o Sr. Ronaldo, e que na hora em que foi chamado pela direção da cadeia, por causa do facebook, tinha pedido para Petrus guardar para ele na própria escola, o que não viu nenhum mal em fazê-lo. Mas ao ser agredido e aterrorizado pelo então diretor Marcelo da Hora dos Santos, dissera que havia entregado ao Petrus, que por causa disso foi buscado pelo guarda, já em sua galeria onde estava alojado e conduzido ao “isolamento coletivo”, onde permaneceu por nove dias depois saiu revoltado, disposto a lutar por seu direito de continuar trabalhando.
Leia também:
1- A roubada dos presídios federais – por Siro Darlan e Raphael Montenegro
2- Para que servem os presídios? – por Siro Darlan
3- Como transformar seres humanos em seres sem dignidade humana – por Siro Darlan
4- A guerra aos povos pobres e negros com nome de “guerra às drogas” – por Siro Darlan
5- O dia que a casa caiu – por Siro Darlan
6- Isso é uma vergonha, diz o Ministro Gilmar Mendes – por Siro Darlan
7- “Bandido bom é bandido morto” – por Siro Darlan
8- A pena não pode passar da pessoa condenada – por Siro Darlan
9- O Dia do Detento – por Siro Darlan
10- Para além das prisões – por Siro Darlan
11- Justiça Restaurativa – por Siro Darlan
12 – Alternativas à privação da liberdade – por Siro Darlan
13- Quem nasceu primeiro o cidadão infrator ou o Estado criminoso? – por Siro Darlan
14- A ponte para a liberdade – por Siro Darlan
15- O Estado Criminoso – por Siro Darlan
16- O Estado Criminoso II – por Siro Darlan
17- O Estado Criminoso III – por Siro Darlan
SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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