Por Siro Darlan –

Série Presídios XXIV.

“Infelizmente eu to revivendo tudo de novo.

Cadeado grades, confere, a gente segue andando no meio dos lobos.

Que vem de preto na covardia.

Nunca sozinho, só de matilha.

Invade a galeria.

Jogam tudo pro alto.

Coisas de família.

Eles mandam de ralo.

E o juiz não entende o por quê.

Muitos aqui não sai regenerado.

Mas se quiser eu te falo.

Culpa do Estado.”

Weverton Ucelli da Silva. Do livro Corpo preso, mente livre.

Um lugar tenebroso e especial que Petrus escapou de passar foi na cadeia de Japeri, local onde já estiveram alguns da facção ADA, dos regimes fechado e semiaberto. Até 2009 era exclusivamente lá que se encontrava a semiaberta da facção ADA, até que um dos líderes foi morto em frente ao Presídio na sua primeira saída VPL, por um grupo de milicianos que já o aguardava do lado de fora. Por este motivo a semiaberta do ADA foi transferida para Bangu IV onde se encontrava o restante da facção. Nessa ocasião a SEAP resolveu o problema colocando duas cadeias dentro de uma, ficando o regime semiaberto no pavilhão A e o fechado no pavilhão B. Os demais presos que eram do regime fechado, mas estavam cumprindo pena em Japeri, também foram transferidos para o Bangu IV a ocasião. Foi através deles que Petrus tomou conhecimento das atrocidades ocorridas por lá.

Um caso em específico merece ser mencionado: havia um homem preso lá, cuja mulher pagou a um guarda de cadeia para matá-lo. O preso, talvez prevendo o mal que lhe sucederia, havia se mudado para a galeria evangélica, onde só pôde viver por poucos dias, pois o maldito assassino de aluguel travestido de agente do Estado, mandou uma senha para o preso em questão, para que o mesmo comparecesse na segurança (setor da parte administrativa da cadeia). Depois deste evento o preso apareceu morto, enforcado na cela de isolamento, simulando um suicídio que nunca aconteceu.

Que as testemunhas um dia se levantem do inferno para dizerem o que viram, e esse verme se junte aos seus iguais no lago de fogo – “Bem aventurados aqueles que tem fome e sede de justiça, porque serão fartos” (Mateus 5.6).

É esse tipo de verme que compõe o time que veste camisa preta, anda com um distintivo pendurado no pescoço e tem nas costas a inscrição: policial penal – é o típico cidadão de bem, que aparece na televisão ostentando uma dignidade que não possui.

Essa realidade é bem diferente da que homens como Wagner Montes e Marcelo Resende, costumavam propagar. É o Sistema visto de dentro pra fora, sem os óculos de solda que a sociedade de filhinhos de papai e a geração Tik Tok costuma usar. Um seriado antigo chamado Arquivo X, tinha como Slogan a frase: “a verdade está lá fora”. Todavia, para aqueles que estão encarcerados, a verdade a respeito deles, sem deturpação, sem sensacionalismo, sem romantismo, sem floreios, nem criações fantasiosas, só pode ser obtida através dos relatos verídicos daqueles que viram, ouviram e sentiram na pele o que o Estado criminoso faz toda vez que não está sorrindo por estar sendo filmado. Nesse caso: a verdade está lá dentro; a verdade está aqui dentro – pois aquele que escreveu estas linhas, não poderia estar em nenhum outro lugar, senão dentro de uma Penitenciária do Estado, do contrário seu testemunho seria inverossímil.

Violação do direito à vida \ Direitos Humanos Universais

Vista do Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu. (Foto: Divulgação)

Um caso de humanidade e desumanidade praticado por dois homens, sendo um deles um preso com uma pena de 124 (cento e vinte e quatro) anos, o outro um agente do Estado criminoso, o Subdiretor o Bangu IV, durante mitos anos, chamado de Seu André, merece ser mencionado nesta exposição do câncer com metástase que já contaminou todo o Sistema.

Havia em Bangu IV, um preso chamado Aureliano Ramos de Oliveira Junior, um homem pardo, na faixa dos cinquenta anos, portador de HIV e hepatite C, que desesperadamente lutava por sua liberdade junto aos órgãos públicos, buscando um indulto humanitário ou coisa do gênero, por ser portador de duas doenças incuráveis, e principalmente por não haver um médico especialista (hepatologista) em todo o Sistema. Seu vulgo era Samuray, e já estava no Sistema há muitos anos, definhando aos poucos. Semelhantemente a Petrus, tinha sido abandonado por sua companheira no ano de 2015, e igualmente impedido de continuar trabalhando,(no caso dele) junto ao Serviço de Assistência Social na cadeia, pelo motivo de ter aceitado dinheiro de alguns presos para obterem um ajuda no andamento de processo de visita íntima realizado pelo Serviço Social. Pouco antes disso, havia obtido depois de muita luta a oportunidade de ir embora da cadeia por motivo do Estado não lhe fornecer o tratamento de saúde que necessitava. A autoridade judiciária pediu apenas seu laudo médico comprovando a doença, que se encontrava em seu prontuário.

Tomando conhecimento disso, Seu André – Subdiretor, da Penitenciária Jonas Lopes de Carvalho, sendo então Diretor o Sr. Major Murilo Angellot -, de sumiço no laudo médico que estava no prontuário de Aureliano, com clara intenção maligna de continuar privando-o da liberdade, mesmo havendo uma pré-disposição do judiciário em soltá-lo. Esse ato covarde, de fato impediu Samuray de ir embora naquela ocasião e para sempre. Pois Aureliano, impedido de ir embora por Seu André, morreria na cadeia depois de mais de vinte anos preso, sem poder pisar na rua. Por causa de um verme covarde que merece ser assado em fogo brando até sua alma trevosa ser puxada para o abismo de Abaddom.

Pouco depois de tamanha covardia realizada por um “cidadão de bem”, representante do Estado criminoso, Aureliano descobriu o que tinha acontecido e o por que não tinha ido embora. Conversando à respeito com um dos líderes da facção ali presentes (havia muitos líderes nessa época em Bangu IV), Samuray se viu diante de uma decisão a ser tomada. Ocorre que o líder em questão, após se certificar de que era verdade o que ouvia de Aureliano, lhe fez a seguinte pergunta: “você quer que eu mande matar ele”? Depois de refletir um pouco, Samuray respondeu: “não, não quero não”. Sua crença espírita kardecista fora decisiva neste ponto. Mesmo sendo vítima de uma covardia imperdoável, teve misericórdia do desgraçado, preferindo deixá-lo viver, quando tinha a vida dele em suas mãos.

Nesse caso, quem teve maior humanidade? O preso ou o agente representante do Estado? Quem é a besta cruel e sem piedade e quem é aquele que se compadeceu de seu inimigo quando podia tê-lo morto?

Alguns anos depois, durante uma revista noturna, onde todos os presos de uma galeria foram conduzidos à galeria destinada a visita íntima, Samuray recebeu um parte disciplinar do diretor que acabou de fechar o seu caixão, impedindo-o de progredir ao regime semiaberto e consequentemente de ir embora. No fim da primeira onda de Covid, após ficar isolado com outros presos com comorbidade em uma galeria antes destinada a visita íntima, Samuray resolveu sair da facção. Pediu seguro e ficou na galeria de isolamento e castigo até ser transferido para Japeri, onde desistiu de viver, sem perspectiva nenhuma de ir embora, e faleceu pelo agravamento de suas doenças, acompanhadas por dose sucessivas de cocaína – a morfina do preso.

Leia também:

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9-  O Dia do Detento – por Siro Darlan

10- Para além das prisões – por Siro Darlan 

11- Justiça Restaurativa – por Siro Darlan 

12 – Alternativas à privação da liberdade – por Siro Darlan

13- Quem nasceu primeiro o cidadão infrator ou o Estado criminoso? – por Siro Darlan

14- A ponte para a liberdade – por Siro Darlan 

15- O Estado Criminoso – por Siro Darlan

16- O Estado Criminoso II – por Siro Darlan

17- O Estado Criminoso III – por Siro Darlan 

18- O Estado Criminoso IV – por Siro Darlan

19- O Estado Criminoso V – por Siro Darlan 

20- O Estado Criminoso VI – por Siro Darlan 

21- O Estado Criminoso VII – por Siro Darlan 

22- O Estado Criminoso VIII – por Siro Darlan 

23- SEAP no banco dos réus – por Siro Darlan 

SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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