Por Siro Darlan –

Série Presídios XIX.

“Lembro-me de que logo logo passei, repentinamente e com impaciência, a me dedicar a todos os detalhes daqueles novos fenômenos, a ouvir as conversas e os relatos de outros presidiários, eu mesmo lhes fazia perguntas, obtinha as respostas. Desejava, entre outras coisas, conhecer forçosamente todos os graus das sentenças e das execuções, todos os matizes dessas execuções, a visão dos próprios presidiários sobre tudo isso; procurava imaginar o estado psicológico dos que caminhavam para suplício. Eu já disse que perante o castigo é raro alguém permanecer calmo, incluindo aqueles que antes já haviam sido espancados várias vezes.”

Fiódor Dostoievisky. Recordações da Casa dos Mortos

Esse foi o início de sua decadência no cárcere. Petrus fora impedido de continuar trabalhando, informado de sua desclassificação, mas não aceitando uma falta grave que não cometera, baseada numa acusação falsa. Petrus escreveu a todos os representantes dos Poderes Públicos que conhecia ou tinha ouvido falar, pra reverter a sentença injusta que havia sofrido. Chegou a alcançar êxito nessa empreitada, conseguiu anular a falta grave e continuar assinando remição de pena até o ano de 2016, mas ainda proibido de voltar a trabalhar na escola, ambiente que tinha aprendido a amar como se fizesse parte de si.

Pouco tempo depois, sua companheira resolveu abandoná-lo, mas sem jamais admitir isso claramente, simplesmente deixou de ir vê-lo sem nenhum motivo além do óbvio. Era ainda meados do ano de 2015 quando isso aconteceu, e Petrus resolveu se mudar de galeria e ir morar na B2, onde havia um cubículo evangélico, lugar onde voltou a dedicar-se muito à leitura e a estudos diversos. Porém, logo viriam os sintomas da tuberculose: tosse com sangue, tosse insistente, tosse noturna principalmente e emagrecimento, cansaço e fraqueza. Mas não se entregou.

No ano seguinte, fora diversas vezes na UPA do Complexo Penitenciário, onde tiravam chapa do pulmão, costumavam dar uma Benzetacil e mandá-lo de volta para sua Unidade, para então continuarem os sintomas, se agravarem os sintomas e ter que ir mais uma vez na UPA fazer a mesma coisa repetidamente e sem resultado algum. Quando isso ocorreu pela terceira ou quarta vez, Petrus percebeu que estavam tentando matá-lo na cadeia através da falta de tratamento adequado, negando-lhe os remédios que poderiam fazê-lo escapar de uma morte certa.

Numa das vezes que fora na UPA, já estava retornando, ou melhor, enfileirado e algemado para retornar para o Bangu IV, quando ouviu o barulho de pancadas que, de tão altas, chamaram atenção dos agentes do SOE, que fariam o transporte dos presos de volta para suas unidades de origem. O agente em questão se dirigiu ao guarda da própria UPA e perguntou que barulho era aquele. O guarda respondeu que ia ver e em seguida se dirigiu aos fundos da UPA, um local atrás da cela onde os presos ficavam acautelados aguardando o atendimento ou o retorno a sua unidade. Quando voltou, o guarda falou que estava tudo bem, só estavam quebrando as pernas de um defunto para caber na geladeira, pois estava muito cheia. E acrescentou dizendo: “hoje o Zé Maria tomou café, almoçou, tomou lanche da tarde e jantou”, querendo dizer com isso que só naquele dia havia morrido quatro, vítimas de tuberculose, e tinha mais dois que “estavam quase indo”, mas não podia morrer mais ninguém porque não havia espaço na geladeira. Ainda fez um comentário sobre um espirro fétido que um preso que havia morrido aquela manhã, tinha dado e sobre o que “uma bactéria forte dessas pode fazer no m pulmão de um”.

Petrus tinha determinado que não morreria daquela jeito, por isso escreveu a sete órgãos dos Direitos Humanos, o que levou a Corregedoria da SEAP até a Unidade cerca de dois ou três meses depois, quando já havia começado o tratamento, através de uma enfermeira de fora que vinha colher exame de escarro em sua Unidade, enquanto a enfermeira da casa lhe dizia que não tinha nada, que sua chapa de pulmão estava limpa. Essa era só mais uma mal profissional, contaminada por um Sistema corrupto e assassino.

Hospital penitenciário do RJ diz que preso chegou morto à unidade, mas câmeras mostram detento agonizando | Rio de Janeiro | G1
Imagem: Reprodução / TV Globo

O tratamento só teve de fato início em janeiro de 2017 quando já estava com tuberculose a um ano e meio. Esse momento coincidiu com um momento de grande turbulência na cadeia, com a saída forçada, ou seja, a expulsão de cerca de quinhentos homens da facção: o bonde do Coroa (Samuca) que havia herdado o “império do Linho” – traficante desaparecido, tido como morto pelo mundo do crime.

O bonde do Coroa era constituído de homens provenientes do Cajú, Pedreira, Vila do Pinheiro, Vila do João e outras favelas do complexo da Maré, e justamente os líderes desses homens eram os responsáveis por Petrus na facção, ou seja, dentro da cadeia. Ninguém podia viver ali sem um responsável ou sem ser filiado a uma das áreas dominadas pela facção ADA. Por isso, Petrus era filiado ao bonde do Coroa que tinha sido quem o havia convidado a fazer parte da facção ainda na Divisão Anti Sequestro. Mas como estava para acontecer a expulsão dos homens do bonde do Coroa da cadeia, Petrus fora avisado e orientado a não sair junto com eles, pois a partir daquele momento ele poderia se filiar a favela do Sabão em Niterói, que passaria a ser responsável por ele na cadeia. Tendo sido dado um ok como resposta ao ser consultado o líder responsável pela favela do Sabão na cadeia, Petrus evitou o destino dos que foram expulsos e foram parar no Bangu X, onde permaneceram um mês e pouco até retornarem, se filiando a outras áreas e dividindo as favelas do Coroa entre si, estabelecendo novos donos que voltaram a pertencer a facção, enquanto o Coroa (Samuca) continuava banido da mesma.

Os dias que antecederam a saída foram tensos, com uma grande circulação de armas na cadeia. Eram as preliminares de uma guerra que ocorreria com certeza, se o bonde do Coroa não tivesse por fim cedido e saído da cadeia e da facção.

Depois da volta de todos que haviam sido expulsos da facção, agora já reintegrados, exceto o Coroa que se encontrava em presídio federal, ocorreu um verdadeiro êxodo no ADA e muitas áreas passaram para o lado do TCP, como as comunidades da Pedreira, Quitanda, Caju, São Carlos e muitas outras. Por isso o efetivo da cadeia diminuiu muito e o que restou da facção ADA teve que ser transferida para a Penitenciária Lemos Brito (Bangu VI) no ano de 2018. Após a chegada em Bangu VI houve outra debandada de áreas, agora, porém, para o Comando Vermelho, como por exemplo: Sabão, Palácio, Ilha da Conceição e Boa vista, morros e favelas de Niterói, além de lideranças dos morros do Estado, Chumbada e Rua da Feira. De maneira que a facção ficara reduzida a praticamente duas áreas principais: Vila Vintém e quase toda a Cidade de Macaé, cujo líder anterior tinha “pulado”, ou seja, mudado para o lado do TCP, mas seus subordinados e outras lideranças de Macaé não o acompanharam, preferindo continuar na facção e levantando outro líder no lugar do que tinha saído.

Houve outro momento de tensão quando pessoal do PCC de São Paulo que havia feito uma aliança com a facção ADA, foi convidado a se retirar da cadeia por estar fornecendo armas aos inimigos pertencentes a facção TCP. Se pensava na época que eles tentariam resistir e iniciar uma matança como era de costume nas cadeias por onde passavam. Mas inesperadamente a saída deles ocorreu de modo pacífico, sem nenhuma morte.

Em meio a estes acontecimentos, Petrus começou a trabalhar na escola da Unidade, mais especificamente na biblioteca da escola no turno da tarde, enquanto no turno da manhã terminava seu Ensino Médio e iniciava seu segundo curso de teologia – o primeiro tinha sido em 2009 e patrocinado por ele mesmo – que teria a duração de dois anos.

Foi em Bangu VI (Lemos Brito) que Petrus conheceu o pior diretor que encontraria no Sistema, um sujeito chamado Cabral, que sem nenhum motivo desclassificou ele e mais outro companheiro que trabalhava na escola, ou seja, a partir daquele dia não poderiam mais assinar remição de pena, se quisessem trabalhar teria que ser, além de não ganhar nada, sem remir a pena também.

Isso durou por três meses até a visita do Desembargador Siro Darlan na escola da Unidade, com tudo sujo por ninguém limpar por três meses por causa da desclassificação sem motivos efetuada pelo Sr. Cabral.

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SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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