Por Roberto Amaral

Ninguém de bom senso jamais cultivou dúvida quanto às dificuldades que aguardavam o terceiro mandato de Lula (Cândido ficou preso nas páginas de Voltaire). Elas foram anunciadas e levadas a cabo, uma a uma, já a partir do governo Dilma Rousseff, com a decisiva participação do STF e, nele, do inefável Gilmar Mendes, um e outro peças fundamentais na engrenagem do impeachment e no mostrengo em que se converteu a chamada Lava Jato, súcia de juízes e procuradores do MP cujos crimes, hoje de domínio público, aos poucos se vão comprovando.

Clara como o sol do meio-dia era a aliança de vida e de morte do atraso, reunindo no mesmo samburá a política menor (o “Centrão”), a Faria Lima e o reacionarismo estrutural da caserna. Nada obstante a “Carta aos brasileiros” de 2002 e seus dois primeiros governos, Lula é sempre a “bola da vez”: o adversário a ser abatido pelos herdeiros da Casa grande. Assim foi no processo eleitoral de 2022, e assim haveria de ser no governo, fracassadas as tentativas de impedir-lhe a posse. A coalizão de partidos e forças políticas e econômicas que Lula costurou, com a habilidade que ninguém lhe nega, abriu caminho para a terceira eleição presidencial, notável até na magreza de seus números. Mas o arco de alianças eleitoral vitorioso revelou-se insuficiente para assegurar uma governança tranquila, como se vê no dia a dia. A dança das pastas – um ministério que está sempre por ser – é apenas uma das manifestações da insegurança político-partidária do governo, antessala da crise institucional, flagrada como a contradição entre um poder executivo de índole progressista e um Legislativo que se afirma como reacionário, semeador do atraso, beneficiário da má política que se ceva nas burras do erário. As negociações se fazem nos termos da república que temos, e não nos pedem sanção ética, senão a medida de sua efetividade: garantir o governo, primeiro dever de um chefe de Estado, como lembrava o gênio florentino.

O exercício da política, todos sabem, não se dá no espaço sideral e não se cinge à livre escolha dos agentes: entre o querer e a realidade interpõe-se a chamada “correlação de forças”, que condiciona ações de uns e outros. Mas não se trata de império: o homem é sempre sujeito do processo histórico, porque pode sempre alterar as condições objetivas, aquelas legadas pelo passado. Diante do fato histórico ele se define, e escolhe seu destino. Este, o desafio que a história presente coloca para Lula, que precisa precatar-se para fugir do risco de tornar-se prisioneiro das circunstâncias, pois, sabem os negociadores, o acordo de hoje não tem validade preestabelecida e seu termo pode se dar a qualquer momento. É similar ao pacto de Fausto com o diabo. Este cuidado é tão mais precioso quanto as negociações se fazem por detrás das venezianas e à míngua de qualquer discussão pública. Devendo e podendo explicar-se, pois tudo tem a dizer, Lula transfere o ofício para a grande imprensa, que assim se regala no seu papel de desinformar. O povo, que a tudo assiste sem entender, porque nada lhe é dito, se queda em silêncio, e o presidente, conta a imprensa, se pergunta por que “não há mais mobilização popular”, depois de anunciar que “o Centrão não existe”. Ora, presidente, o “Centrão” existe, e não só existe como controla o Congresso (de que o Executivo depende) e, sob sua gerência pessoal, instala-se em nosso governo. E talvez neste fato se possa dizer ao presidente que o povo não está mobilizado porque não é corretamente informado e muito menos foi chamado à lide. Em nenhum momento o presidente se dirigiu ao país para explicar a crise de governo e a necessidade de conciliar com adversários. Dada essa satisfação – um dever tanto político quanto ético – o presidente teria estimulado a mobilização de cuja falta hoje se ressente, estaria mais forte, e, sem dúvida, teria reduzido o alto preço já pago e ainda por pagar às forças do atraso com as quais, não podendo terçar armas, deu o abraço de boa acolhida.

Uma explicação para essa reclamada ausência das massas o presidente pode encontrar no fato concreto de, em pleno décimo mês de um mandato de quatro anos, ainda não dispormos de um ministério confiável, que é como um governo se apresenta. Esse ministério que ainda se equilibra na Esplanada, velho de dez meses, mexido, remexido e sempre à espera de novas mexidas, permanece um gabinete pró-tempore, uma expectativa do que não se sabe que está por vir. E, assim como é alterado, ao sabor de jogos de interesses menores, sem atender a linhas político-programáticas, torna-se um ministério sem feição definida, como as nuvens de verão: ao sabor das pressões. Como reclamar a necessária mobilização das massas sem anunciar-lhe um rumo, para além da notória e muito aplaudida opção do presidente pelo combate à miséria e à fome?

“União e reconstrução” é um slogan razoável, mas distante de sugerir o projeto de país que se requer do governo de salvação nacional, após campanha eleitoral que, necessariamente presa à questão democrática, ingente, não ensejou o debate programático. As políticas táticas, como o Bolsa Família, aguardam o concerto de um programa estratégico que, constituindo um todo orgânico e lógico, fale do curto, do médio e do longo prazos. Este ainda poderá ser o grande legado do governo de centro-esquerda, para além da consolidação democrática.

A única forma de preservar suas conquistas, e esta deve ser a expectativa do bom estadista, é fazê-las patrimônio popular. Por que desprezar essa alternativa, exatamente quando nosso governo é acossado pelo sistema?

A movimentação das massas, como tudo aliás, não é efeito sem causa, não é fenômeno político autônomo, não é obra do acaso e, quando não se trata de instrumento de poder fascista, depende de elementos subjetivos (a palavra de ordem mobilizadora) e objetivos (seu nível de organização política).

Estamos em face de uma relação dialética: a mobilização depende de palavras de ordem tanto concretas quanto corretas, e as políticas de Estado só se sustentam na medida em que constituem patrimônio da coletividade. Portanto, precisam de ser, didaticamente, discutidas com os movimentos sociais: qual, porém, a sustentação social que têm (ou podem ter) as atuais negociações de pastas em busca de apoio parlamentar? De outra parte, e retomo outra obviedade, não é possível manter a política externa, que ainda é, hoje como nos dois mandatos anteriores de Lula, o que de melhor e mais coerente foi ofertado ao país, sem discuti-la com a sociedade, para envolvê-la no projeto de soberania nacional. Como enfrentarmos a violência larvar sem discutirmos com a sociedade sua raiz social? Como enfrentar o reacionarismo e o intervencionismo político da caserna sem discutirmos com a sociedade quais as forças armadas de que o país carece?

Não basta olhar a esmo para o tempo, injustificadamente surpresos, e ao cabo descobrir que somos uma sociedade conservadora e, desvendado o segredo de polichinelo, aceitarmos o cenário oferecido como um édito dos deuses, diante do qual aos mortais, e somos todos, só resta conviver, apacientados os espíritos rebeldes.

Se setores da esquerda organizada precisam se dar conta dos limites do pacto – tanto daquele que levou à eleição e posse quanto o pacto governante-, precisam de, a igual modo, dar consequência à percepção de que muito do que vivemos desde 2013 é decorrência -– de nosso abandono da luta ideológica: caminhando por desvios táticos e incompreensão histórica, terminamos por renunciar à militância, ao “chão de fábrica” e à organização das massas. Ressalvo a exceção em que se constitui o MST. Acompanhámos indiferentes a crise do trabalho na produção capitalista e nos surpreendemos com a crise política do sindicalismo. Mas, acima de tudo, a esquerda renunciou à educação das massas, a mais revolucionária das pedagogias, deixando espaço livre para o avanço do conservadorismo que caminha para o protofascismo, lavrando em todos os estratos sociais.

Essas questões se oferecem para quando forem estudadas nossas dificuldades políticas presentes. Por enquanto, é de bom conselho afastar de nossas cogitações a crença bovarista de que a vitória eleitoral do último 30 de outubro encerra o fim da história.

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O horror e a chicana – Dados do Global Wealth Report 2023, divulgados recentemente pelo banco suíço UBS, mostram o Brasil no topo do ranking da desigualdade, superando gigantes como Índia e EUA, com o 1% dos mais ricos concentrando nada menos que 48,4% da riqueza produzida no país. No Japão, a cifra fica em 18,8%, segundo o relatório. Marcio Pochmann, presidente do IBGE, completa a informação aduzindo que os chamados CEO´s (presidentes e diretores de empresas), por aqui, chegam a ganhar 5 mil vezes mais que os seus subordinados, e muitos desses diretores alcançam ganhos superiores a R$ 1 milhão por mês.

Nesse quadro de desigualdade (que Pochmann qualifica como “indecorosa”), os porta-vozes do grande capital – os mesmos que, décadas atrás, tonitruaram ser um “desastre” a implementação do 13º salário sancionada por Jango – agora fazem terrorismo com a perspectiva de se limitar a cobrança de juros escorchantes por parte das instituições bancárias.

No mesmo cenário, a equipe econômica de Lula dá um péssimo sinal ao tentar, por meio de uma chicana, flexibilizar os pisos constitucionais da Saúde e da Educação – essa pequena mas valiosa conquista civilizatória de uma nação que tarda a nascer.

(Colaboração Pedro Amaral)

ROBERTO AMARAL – Escritor, jornalista, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Autor de “Socialismo, Morte e Ressurreição” (Editora Vozes). Em 2015, foi nomeado conselheiro da Itaipu Binacional, foi presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle). www.ramaral.org

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