Por Ricardo Cravo Albin

Nem há tanto tempo, uns dez anos, recebi pequeno grupo de norte-americanos que ensina língua e gramática portuguesas na Universidade de Washington.

Em tantas conversas descontraídas, houve um momento em que não me contive e abordei o uso indiscriminado do inglês que alguns veículos de comunicação insistem em fazer por aqui. Especificamente nas propagandas e nos outdoors de produtos para a juventude, como jeans, sandálias e tênis.

Eles correram a me dar razão e logo disseram que depois da Guerra o governo americano quis ajudar a erguer a Europa, tomando a França, seus costumes e sua língua como muito bem-vindos à América. Resultado, em poucos anos os perfumes e a moda impuseram uma chusma de palavras francesas como habituais na linguagem corrente. Tal como aqui, palavras tradicionais da língua de Shakespeare foram substituídas pela língua de Voltaire.

E a tal ponto que um dos visitantes revelou que fizera sua defesa acadêmica de tese sobre o uso abusivo do “francesismo” na língua falada dos E.U.A. Mas logo pontuou que de fato a preponderância dos anglicismos na língua falada no Brasil era muitissimo maior. Mas de pronto fez a observação final… e fatal: “mas isso ocorre em quase todo o planeta…”. Respondi com o conforto do advérbio mais polido – “certamente. Não há como se negar a realidade”.

Aliás, há mais de sessenta anos dois oráculos da cultura popular, os compositores Assis Valente e Noel Rosa já botaram a boca no trombone contra o estado de desapreço ao nosso idioma.

O primeiro, Assis, foi contundente – “Good-Bye, boy / Deixa a mania do inglês / É tão feio pra você / Moreno frajola…”.

Assis Valente fez a música para Carmem Miranda voltar a cantar, duas semanas depois da vaia que Carmem recebeu na primeira noite de sua reestreia na Urca, já consagrada nos Estados Unidos, quando exclamou esfuziante, sem se dar conta do efeito negativo – “ Hello, my good people carioca, good night”.

O segundo discurso para defender a língua portuguesa foi o de Noel Rosa – “O cinema falado / É o grande culpado / Da transformação…”. Referia-se o poeta da Vila aos anglicismos trazidos pelo cinema falado e a mania do inglês introduzida pela indústria do lazer norte-americano, com os filmes, os discos e as canções, que inundaram tanto o Brasil quanto o mundo inteiro.

Cabe registrar aqui que nesses últimos anos o predomínio do inglês como modismo (e inevitável imposição cultural) foi ainda mais preocupante.

Nada contra o idioma de Shakespeare, por óbvio, muito menos contra os Estados Unidos. Mas, por claríssimo, pelo amor e defesa da dignidade da “Última flor do lácio”. Observei que até certos títulos de filmes nem mais são vertidos para o Português. Mesmo procedimento ocorre em relação às músicas tocadas em rádios e tevês e mesmo em (até) títulos de reportagens de certas revistas. Que não se pejam de usar e abusar de palavras em inglês, mesmo havendo correspondentes em português de uso tradicional e muito mais fáceis de compreensão.

Em abril do ano de 1999, José Saramago visitou o Rio. E em uma de suas falas de abertura – creio eu que em recepção no hoje inexistente Hotel Glória – ele reclamou do excesso de palavras inglesas, logo Saramago que acabara de receber o Prêmio Nobel como escritor da língua portuguesa – “Imaginem, colegas aqui presentes, que ainda ontem ao chegar ao hotel ouvi da recepcionista o seguinte: “Mister Saramago, welcome. Devo avisá-lo que chequei se chegou algum fax (pronunciando fex com “e” fechado). Chegaram-lhe dois “fexes”, um de Lisboa, outro de London”. Retruquei-lhe – “Minha jovem, como só falo português, diga-me assim: Senhor Saramago, bem-vindo. Chegaram-lhe dois avisos, um de Lisboa, outro de Londres. Aí eu compreendo.” E ela “Sorry, senhor”. E emendou embaraçada um constrangido “Perdoe-me Senhor.”

O escritores Jorge Amado e José Saramago. (Arquivo Casa Jorge Amado)

Saramago parecia não se conter pelo uso de anglicismos no Brasil – “Essa triste realidade trespassa os valores básicos de um vernáculo, até há pouco varão, como o português. O varão de ontem hoje parece uma donzela frágil, prestes a perder a virgindade. Ameaçada pela espada em punho da submissão ao anglicismo e ao computador. Uma situação, senhores, quase pornográfica.” Os aplausos choveram, e o anfitrião ordenou, para aliviar a tensão, que se servissem os drinks. Que, ao contrário, não diminuíram o calor dos debates. Antes elevaram o tom da defesa candente dos muitos escritores a favor da nossa língua.

Saramago colheu talvez o que menos desejasse, arrastados discursos dos eternos oradores verborragicos. Inflamados e quase gritados.

RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

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