Por Antonio Veronese

São quatro pirralhos em louca correria sob a chuva fina da Lagoa-Barra.

Quatro brasileirinhos cascas-grossas, filhinhos de Deus e órfãos de tudo, num zigue-zague infernal na roleta russa dos carros em movimento:

-Pega, pega…

O que vem na frente, o mais graúdo dos quatro, tendo já escondido o produto do roubo nas profundezas cárneas da cueca, estampa no rosto uma “overdose” de adrenalina, olhos que saltam das fossas faciais, caricaturesca Beth Daves em agonia.

Logo atrás, voando baixo, vem um mais escurinho cobrindo a retaguarda: bichinho miúdo, cabeça lisa e canelas finas, dentes de alemão apesar da infância de pouco leite, cabeça girando num frenesi que faz saltar os tendões do pescoço como um beque-central no sufoco da pequena área.

Ainda mais atrás, na rabeira, retardados na louca carreira, vêm os dois mais minguadinhos: “physic-du-rôle-du-miserê”, destrambelhamento de rês desgarrada, pés descalços fritando no contorcionismo sobre o asfalto quente, tentando – no limite dos pulmões- acompanhar os proeiros na cavalgada infernal.

Pega, pega os “lazarento”!, grita o cidadão engravatado arfando pelas ventas, carro abandonado pra engrossar o corso ensandecido dos perseguidores.

– Peeega!, repete em coro a multidão extasiada com o triste circo que se instala quebrando a rotina sem graça da tarde domingueira.

Lá na frente, alertado pelo banzeiro, um guarda de trânsito saca enorme cacete e organiza o cerco. A plateia congela em surda expectativa…O maior dos quatro, ignorando a autoridade constituída, mantém aceleração e curso inalterados até que, na iminência do bote final, já nas ventas do parrudo policial, dá um salto de acrobata e, desdenhando a lei da gravidade como um personagem de Chagal, voa por cima dos carros retidos no sinal, desaparecendo sem deixar vestígios na dobra da esquina do canal.

Esse já era!!, vaticina o apontador do bicho, sem esconder um sorriso de satisfação.

O segundo “meliante”, o que vem na cobertura, fiando-se na rota traçada pelo proeiro, acaba caindo na mesma armadilha: o estreito matadouro entre os ônibus e o paredão.

– Esse não escapa!!, prevê a multidão babando seu sadismo… mas o moleque, que traz nos seus calcanhares, em fúria, o motorista “desapropriado” de sua carteira, não desacelera o curso suicida, parecendo desdenhar das agruras do destino.

– Pega, pega esse!, urra a grã-fina abrindo a porta do carro importado, embriagada de histeria.

– Pega!!, repete a “matilha” de marmanjos vitaminados que, sorvendo seu coquetel de adrenalinas, encena uma verdadeira «chasse à courre» à la française…

Na esquina do canal, o militar, tentando recuperar-se do fiasco da primeira tentativa, abre braços e pernas como um goleiro na hora do pênalti. A multidão emudece na expectativa. Num gesto brusco o motorista espoliado, que corre “colado na traseira” do «meliante» em fuga, estica a perna de capoeirista versado desferindo violento “rabo-de-arraia” nas canelas tísicas do velocista. O franguinho desequilibra, faz que cai, mas não cai, bambeia mas se segura e, pedindo ajuda à Nossa Senhora d’Aparecida, ginga o corpo ensaboado de suor e passa, liso como sabonete, entre as pernas gordas do policial, Garrinchinha brasileiro que desaparece na mesma esquina do canal. O apontador do bicho não resiste e soca os céus num eufórico –puta-que-pariu!!

Mas ainda restam dois, meu Deus!!, os dois mais miudinhos da rabeira, tentando escapar no labirinto do congestionamento.

– Tem mais dois lá!!, aponta a grã-fina. A multidão gira as cabeças numa coreografia de Rolland Garros…

– Lá atrás, tem mais dois!!, repete o circo romano, enquanto o guarda recompõe-se do segundo vexame e tenta reassumir o controle da situação:

– Pega, pega os “lazarento”, não deixa escapar!!

Minduin, um lindo sararazinho desdentado dos “zóinhos” verdes, sete aninhos de sobrevivência e sete vidas de exclusão, entra zunindo no curral estreito dos automóveis. Cercado, atira-se por debaixo do lotação e dá de cara, já na calçada oposta, com Dentinho, o menorzinho branquela dos quatro que, sem mais forças pra correr, começa a chorar… um choro fundo, desesperado, o pavor estampado nos olhos miúdos da criança:

– Espera eu Minduim, espera eu! implora. Não me deixa eu aqui!!!…

Minduim, sensível ao choro do pequenino, vacila de solidariedade, atrasa o passo e estica a mão solidária arrastando consigo o companheiro… mas perde com isso tempo precioso. O cerco se fecha, não há mais como escapar! Num último e desesperado recurso, atiram-se os dois filhinhos-de-Deus no canal da Visconde de Albuquerque, acoutando-se sob a velha ponte de pedra. A “cavalaria” dos perseguidores, em êxtase, cerca e faz o paredão. Fim da linha! A andrajosa parelha entrega-se derrotada à água pútrida, os ossos das costelas abrindo o fole da sanfona do peito, como na agonia da consumação. Dentinho chora convulsivamente, mas Minduim, medo e revolta destilados em surpreendente valentia, encara de frente a multidão:

– Bate não, filha da puta, ameaça o pequenino, valente como um sagui encurralado. Tá me segurando por quê, filho da puta? Que foi que eu fiz?

– Roubou minha carteira, grita espumando pelas ventas o motorista que, a muito custo, é contido em sua fúria pelo policial.

– Eu te roubei!? Eu não roubei nada não!, urra o pequenino. Quem te roubou foi Tião, o grandão qu’ocêis deixaram escapar. Eu num roubei ninguém, não!!, repete, engrossando a voz ante o silêncio da plateia atônita.

– Cadê, cadê tua carteira?, continua ele. Cadê? Comigo é que num tá! Olha aqui, pode ‘arrevistá’, grita o pequenino, desvencilhando-se num tranco da própria camisa presa nas mãos do motorista. Olha aqui, eu num roubei nada não! Tá vendo? Eu tô limpo, limpo!!!!… e larga eu, filho-da-puta…

– Então por que é que tu corrias, pivete? pergunta o policial… Quem não deve não teme!

O menino então, levantando o nariz e arfando o peito com a arrogância de um toureiro, olho no olho da multidão, responde com voz surpreendentemente calma dada a gravidade da situação:

– Olha seu moço, eu corria porque hoje é domingo e tá na hora do jogo do meu Mengão. Por que, não se pode mais nem ir ao futebol nessa cidade?!

E, tomando pela mão o menorzinho que, contagiado por sua valentia controla o choro numa convulsiva crise de soluços, afasta-se lentamente da multidão atônita, a quem se dirige uma ultima vez, agora já cioso de suas prerrogativas constitucionais:

– E não bate não, gente boa. Não bate não que “nóis-é-di-menor”.

ANTONIO VERONESE – Pintor brasileiro autodidata com uma obra considerável, realizou centenas de exposições individuais, tem obras expostas em numerosos museus, coleções públicas e privadas nos Estados Unidos, Suíça, França, Japão, Chile e Brasil. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre, representante e correspondente internacional em Paris, França; Radicado na França desde 2004, antes de deixar o Brasil deu aulas de arte para menores infratores nos Institutos João Luiz Alves, Padre Severino e Santos Dumont, no Rio de Janeiro, e no Caje de Brasília. Utilizou a pintura como forma de reabilitação psico-pedagógica dos adolescentes entre 12 e 18 anos com a bandeira” estética é remédio!”. Alguns dos trabalhos produzidos pelos jovens foram expostos em Genebra (Suíça), no Salão Negro do Congresso Nacional, em Brasília, e na Universidade de San Francisco, nos Estados Unidos. Em 1998, representando o Brasil no Encontro de Esposas de Chefes de Estado, cobrou da então primeira-dama, Ruth Cardoso, medidas para tirar das ruas crianças abandonadas, tendo recebido o apoio de Hilary Clinton. Pela denúncia da violência contra menores no Rio de Janeiro, que faz através de sua pintura e de engajamento constante deste 1986, Veronese foi convidado à Comissão de Direitos Humanos da ONU – em Genebra, para proferir palestra, lá causou grande indignação ao apresentar fotografias de 160 crianças, marcadas por cicatrizes massivas decorrentes da violência urbana, doméstica e policial.

www.antonioveronese.com

Antonio Veronese, Italian-Brazilian painter, lives in France since 2004. He is the author of «Save the Children», symbol of th e 50th anniversary of the United Nations, and «Just Kids» symbol of UNICEF. As well of «La Marche», exhibited in the Parliament of Brazil since 1995, and «Famine», exhibited since 1994 at the Food Agriculture Organization for United Nations (FAO) in Rome.

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