Por Siro Darlan –

Série Presídios XXXIII.

“Algumas pessoas são como tigres, sequiosas por lamber sangue. Quem uma vez experimentou esse poder, esse domínio ilimitado sobre o corpo, o sangue e o espírito de um semelhante, de uma pessoa criada da mesma maneira, um irmão pela lei de Cristo; aquele que experimentou o poder e a plena possibilidade de humilhar com a mais alta humilhação outro ser que traz em si a imagem de Deus, este, involuntariamente já deixou de ser senhor dos seus prazeres.”

Fiódor Dostoievski

Cediço que no tocante ao delito seguem peculiares consequências jurídicas, como reações jurídicas aplicáveis à prática de um injusto punível, sobrevindo, consequentemente a existência da pena unicamente como responsabilidade penal em contrapartida da violação ao bem jurídico tutelado.

As concepções e teorias sobre a finalidade da pena, têm origem no idealismo alemão, sobretudo com a teoria da retribuição ética ou moral de Kant, que prelecionava ser necessária a aplicação da pena, por uma questão ética, de uma exigência absoluta de justiça.

Neste viés, caminha o sistema político criminal por muitos séculos, descurando o Estado, na persecução penal, dos efeitos preventivos alheios à essência da finalidade da pena.

Neste prisma, é sábio que a pena estatal preestabelecida nos diplomas legais, não tem alcançado o seu maior mister, a ressocialização, gerando diversos conflitos éticos e normativos quando não se tem assegurado ao apenado seus direitos fundamentais basilares, ora estatuídos na Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, leis infraconstitucionais, com destaque para Lei de Execução Penal e, principalmente, os tratados internacionais de direito humanos que o Brasil é signatário.

Estabelecer toda a fundamentação do direito penal em torno da justificação dos fins da pena supõe, em primeiro lugar, uma drástica diminuição de seus conteúdos legitimadores e de suas racionalidades ética e teleológica em particular.

Longe de alcançarmos um sistema humanizado de cumprimento de pena, é imperiosa a necessidade do Estado romper com paradigmas ultrapassados sobre a concepção conservadora da remansosa teoria da pena e, desvencilhar-se da visão míope, a propósito, passível de correção, através de métodos alternativos às penas privativas de liberdade, com a finalidade precípua de promover, primeiramente, a pacificação social e não tão somente a punição.

O sistema sancionatório é cruel, pois perante a grave realidade do superencarceramento, as penas impostas ultrapassam e transcendem muitos outros direitos que sequer não foram tolhidos do apenado em sede judicial, causando-lhes inúmeras mazelas ao apenado que resta condenado, também, a conviver em amontoando presos em condições insalubres e subumanas, em verdadeira barbárie, consequentemente, rompendo com o Estado Democrático de Direito, que se tem como pilar mestre o princípio da dignidade da pessoa humana.

Portanto, justifica-se a urgência dos poderes constituídos formularem novas diretrizes na modelação da gestão de políticas públicas, buscando à regulação de vagas no sistema penitenciário com novas dinâmicas na prestação jurisdicional e, amenizando os inúmeros impactos advindos do caos da insustentável realidade da superlotação carcerária no Brasil.

Muito se fala do déficit de vagas como uma das relevantes causas do caos no sistema penitenciário, porém, pouco se aborda o déficit de políticas públicas no tocante à gestão de toda a problemática em evidências no sistema prisional do brasileiro.

Sabemos que não se trata, tão somente, de questão de segurança pública ao positivar o jus puniendi, pois além dessa celeuma, o cidadão se encontra refém do próprio sistema, principalmente, quando privado de sua liberdade, entretanto, nessa ponderação de princípios e garantias constitucionais, o desafio do Estado é maior, qual seja, conter a criminalidade sem transgredir direitos fundamentais e abalar o estado de direito.

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Portanto, é imperativo que se reconheça a ineficiência do Estado em garantir a dignidade daqueles que cumpre penas privativas de liberdade.

Dito isso, impõe-se a missão secular do empoderamento das instituições constituídas em atenção à pessoa privada de liberdade, com o fito de buscar por novas políticas públicas transcendendo a lógica conservadora e tradicional sobre a segurança pública, para isso, requer novos, também, inovadores mecanismos de controle da criminalidade, como ainda, exigindo dos órgãos estatais o fiel cumprimento e observância dos direitos do preso, através de articulação de redes de proteção social, abandonando o arcaico sistema de gerenciamento prisional falido e, indo além, compreendendo a finalidade do controle à criminalidade como medida de prevenção.

Portanto, ao Poder Judiciário é de sua competência o gerenciar a porta de entrada e saída do sistema prisional, assim, em busca melhores respostas no enfrentamento da responsabilização penal que envolve, além da prisão, a imperiosa modernizar todo o aparato com a finalidade de abolir com a concepção da resposta penal tão somente através de penas corporais.

Assim, verifica-se inúmeros resultados positivos frente à função da pena, quando advindos do sistema neo-retribuição, com a aplicação de medidas judiciais diversas à prisão, tais como as alternativas penais, a monitoração eletrônica, a prisão domiciliar, as práticas restaurativas, mediação, entre outras.

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A propósito, importante citar:

Ainda quando mencionados os massivos déficits de fundamentação das teorias racional-finais do direito penal, no ponto decisivo da relação meio-fim, ficaria pendente ainda uma dificuldade, apenas menos grave: o conflito entre possíveis fins da pena, que ocupa há séculos a ciência, e que pode ter perdido hoje parte de sua agudeza, mas de nenhum modo pode ter-se tido como resolvido. Ele se manifesta mais bem no sentido de que fins divergentes conduzem em geral a consequências diferentes, quando muito compatíveis, por causalidade. Disso, dogmaticamente, pouco alarde pode ser feito“. (STRATENWERTH, G. “Que aporta…”, cit., p. 26.)

Já passado o momento há séculos, do Estado, detentor exclusivo do perseguir e punir todos os transgressores da lei, como necessário também os operadores do sistema penal se despirem da remansosa cultura de apenas resolver os conflitos sociais através da pena corpórea.

Pois bem, além dessa prerrogativa legal do Estado, tem-se a necessidade de observar, acima de tudo, os direitos inerentes à pessoa humana, ora consagrados e previstos não somente na Carta Política brasileira, bem como nos tratados internacionais, em destaque, o Pacto de São José da Costa Rica -, que possui status supralegal, roga-se que o modelo seja reformulado, por conseguinte, possibilitando afastar a inaceitável postura de caráter unilateral e absolutizador do Estado.

Portanto, sabido que as penas privativas de liberdade não têm aproximado do que se almeja, ao mínimo do que se propõe, assim, imperioso atentarmos para os mecanismos de prevenção à Violência e não à prisão como instrumento sancionatório, não devemos discutir ou rememorar, sobre os atuais mecanismos utilizados para garantirem a aplicação da pena privativa de liberdade, mas sim, de como livrar-nos dela.

Nessa intelecção, enquanto não se alcança  as inovações necessárias no sistema penal, é dever dos operadores do direito em unidade com os governantes buscarem alternativas ao encarceramento, que é desumano em nossa país, por meio das políticas assistenciais e, principalmente,  promoção da reintegração social, fomentando a nova formatação do sistema prisional, em busca incessante, da responsabilização penal, primeiramente, por meio das penas em meio aberto e, não a prisão que deve ser aplicada em última ratio.

Está mais que sacramentado, o controle dos conflitos sociais por meio da criminalização e do encarceramento nunca solucionou a questão da criminalidade no Brasil, em contramão, as medidas alternativas à prisão aplicadas pelo Poder Judiciário têm trazido muitos resultados satisfatórios, além de desocupar, um pouco, as unidades prisionais e, consequentemente, possibilitam maior gerenciamento do sistema prisional, amenizando, sobremaneira, as barbáries “do estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário”, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347.

Indo além, deve-se conscientizar a sociedade civil e renovar a legislação vigente, visando afastar o monopólio da solução de conflitos pelo Poder Judiciário, pois, na seara penal, em devida proporção ao ato infracional cometido pelo cidadão, é sabido que existem medidas alternativas ao encarceramento na responsabilização penal, além de muito mais eficazes.

Aqui abro um parêntese, para asseverar que o nosso país é um continente em extensão territorial, como também em aspectos culturais e desigualdades socioeconômicas, considerando esse contexto, percebe-se que não há uniformização de gerenciamento de serviços na estrutural do sistema prisional, gerando além das disparidades no tratamento do apenado, como ainda, desrespeito à Constituição Federal de 1988, que estabelece que todos são iguais perante a lei, sendo, portanto, ilegal o tratamento desigual entre os presos.

Revela-se muitas vezes, discrepante o tratamento dos presos no sistema prisional brasileiro, como diametralmente oposto os polos, na rosa dos ventos, de norte ao sul, e nos extremos de leste a oeste.

Assim, necessário uma política uniforme de gestão qualificada de serviços penais, principalmente, àquelas voltadas para as políticas de alternativas penais, de políticas de monitoração eletrônica; de estratégias de participação e controle social e de políticas de formação dos trabalhadores dos no sistema prisional e congêneres.

Portanto, a dimensão tática e operacional do fazer institucional precisa ser questionada e realinhavada conforme os postulados e princípios da gestão penal qualificada, pois a perspectiva de redução de danos da privação de liberdade e o propósito da reinserção social, através de métodos mais humanizados, levando-se a efeito a efetivação de todo arcabouço jurídico de proteção aos direitos inerentes a pessoa do preso.

Concluindo e fechando parênteses, sabemos que é uma construção longa e árdua que se declina principalmente à Educação, em busca da modernização da cultura de singularização da justiça, bem como da presença do Estado em primeiro lugar, no enfrentamento dos conflitos interpessoais e sociais, pois além da ineficiência do Estado, não se desconhece os problemas enfrentados pelos Tribunais frente a toda celeuma, pois o Poder Judiciário, assim como o sistema prisional, está assoberbado, não atendendo toda a demanda processual em tempo preciso, ocasionando a demora da saída os ingressos no sistema prisional.

Como vimos a problemática deve ser tratada em rede, envolvendo os poderes estabelecidos na Carta Magna, os governos em todas as esferas: federal, estadual e municipal.

Não se discute que a paz social deve ser promovida sem afetar quaisquer direitos, portanto, evitando o inchaço do sistema prisional, é evidente que a solução está além da pena, repousa na justiça alternativa, em avesso, das penas privativas de liberdade.

Conduto, em pleno Século XXI, a pena corporal ainda é tida como solução à prevenção da violência e criminalidade, entretanto, devemos trabalhar a possibilidade, ainda distante, de gerenciamento de um sistema penal humanizado e com abrangência, igualmente, em todo o território nacional.

Neste contexto, os métodos alternativos à justiça tradicional não têm inovado somente na solução da lide, mas também restauração os laços rompidos entre os cidadãos, possibilitando, de maneira democrática, devolver a paz social e resolver o conflito, intrinsecamente, entre os envolvidos.

Vejamos a título de exemplificação, os resultados angariados nas práticas da justiça terapêutica, alternativa, tais como as restaurativas, mediação e conciliação, que contem e trabalham métodos que são retumbantemente mais baratos e efetivos que a prisão, o maior custo disso tudo não é implementar as tais novas técnicas, mas mudar o modelo cultural, remansoso, punitivista, por meio da Educação.

Partindo dessa primícia, é importante que se conceba a especialização dos saberes, dos serviços assistenciais, da formação e perfil dos servidores atuantes na gestão da política penal, visando pelo menos que enquanto existirem as penas corporais, que não se permita cumpri-las a mais do que poderia condenar, pois a sanção penal deveria ao menos ser executada com a efetividade dos direitos fundamentais do cidadão e, principalmente, proteção da dignidade da pessoa humana.

Lamentavelmente, milhares de cidadãos ingressos no sistema carcerário brasileiro, padecem, são largados às margens da legalidade e apodrecem aguardando a prestação jurisdicional do Estado, em detrimento da ineficiência de um sistema que já deveria ter sido modificado há séculos.

Portanto, impõe-se aos operadores, gestores, membros das instituições constituídas remodelarem o processo de responsabilização penal, por meio das medidas despenalizadoras, priorizando-as em meio aberto e, buscando afastar à propósito a cultura da função retributiva da pena, em que a própria resposta estatal penal deveria ser concebida como uma instituição voltada para a liberdade das pessoas presas, não para sua contenção e castigo.

Por fim, necessário elevar os patamares da gestão do sistema prisional, primeiramente, em razão do grave índice de superlotação na unidades prisionais e, principalmente, para fomentar uma cultura nova, em busca de outras formas de responsabilização penal, sob o prisma de outros vetores de prevenção à criminalidade não a partir da prisão, mas sim através da conscientização e da Educação.

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SIRO DARLAN – Advogado e Jornalista; Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Ex-juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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