Por João Marcos Buch –

O sistema prisional brasileiro está colapsado pela superlotação e, pior, adota a prática do abuso e violações à dignidade da pessoa humana como regra.

“Posso ir caminhando até lá, não é muito longe?”

“É uma boa caminhada, mas dá sim.”

“Então, é a pé que vou!”

Por essa conversa com o atendente do hotel, iniciei meu trajeto a um dos mais importantes eventos para o sistema de justiça criminal e penitenciário do país. Entre 16 e 17 de agosto de 2023, em uma Brasília com umidade relativa do ar próxima do valor típico de um deserto, preenchida pelas admiráveis mulheres trabalhadoras rurais na Marcha das Margaridas, aconteceu o lançamento do relatório anual (2022) do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). O ato foi intitulado de “Tortura Sistêmica e Democracia na Encruzilhada

Saindo apressadamente de uma aula na Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), ministrada para novos, entusiasmados e críticos juízes do Mato Grosso, passando pelo hotel para apanhar algumas anotações, cheguei ao imponente auditório do Edifício Parque Cidade Corporate, na Asa Sul, antes do início dos trabalhos, a tempo de abraçar velhos companheiros das causas humanas e também conhecer mais um tanto.

O MNCPT foi criado pela Lei 12.847/13, nos termos do Protocolo Facultativo à Convenção contra Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes da ONU. Sua origem normativa e seu objetivo demonstram por si só sua importância e o respeito que deve possuir perante o Estado e seus órgãos.

Foram dois dias de intensos debates, com denúncia sobre a militarização das políticas de privação de liberdade; exposição da limitada assistência às pessoas privadas de liberdade; análise do atravessamento de gênero e raça no sistema; e carência de acesso à saúde pela população prisional, tudo a partir do eixo exposto no relatório anual. Confesso que assistindo às falas que antecederam à minha, fiquei na dúvida sobre se o material que tinha preparado seria o suficiente. As peritas e peritos do Mecanismo dominavam com excelência os dados e testemunhavam com verdade as experiências das inspeções prisionais feitas ao longo do ano de 2022. Não seria aqui, neste breve texto, que traria todos os elementos constantes no relatório. Neste espaço, suficiente dizer que se demonstrou a exaustão que o sistema está colapsado pela superlotação e, pior, adota a prática do abuso e violações à dignidade da pessoa humana como regra.

Cadeia Pública de Porto Alegre, presídio superlotado, no final de 2015 (Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21/Creative Commons)
Cadeia Pública de Porto Alegre, presídio superlotado, no final de 2015. (Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21/Creative Commons)

Além do mais, o que me deixou bastante emocionado e algo angustiado foram as exposições de mulheres e homens que, com o poder consagrado de serem ouvidos, eram ex-prisioneiros e familiares de prisioneiros. Vivi e convivi por mais de uma década com presos, tenho marcado na sola de meus pés o chão da prisão, tatuada em minha pele a dor de quem sente a dor do cárcere, derramado em minhas lágrimas o choro de quem perdeu a esperança de vida digna. Ainda assim não sei o que é a prisão, pois nunca estive preso. Só quem esteve nesse inferno é que pode contar a respeito. E foi isso que aconteceu, foram essas vivências que pulsaram por todo o tempo em todos os espaços. Tudo ficará gravado nos anais do sistema prisional.

O MNPCT outra vez comparece diante da nação para registrar o horror das prisões e a violação dos direitos humanos no cárcere. Que nos novos tempos o governo democrático, comprometido com a erradicação da pobreza e da marginalização, promovendo o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor e idade, cujo fim é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art.4, da Constituição Federal), e que segue o primado constitucional de proibição de penas cruéis, volte seus olhos ao essencial, qualificado e urgente Relatório Anual MNPCT 2022, avançando nas políticas cidadãs e apurando as responsabilidades.

A mim, restou a sensação reforçada de que é possível evoluir em nossa civilidade e acabar com essa perversa necropolítica, reduzindo-se os danos, desencarcerando-se e definitivamente superando-se a violência. 

No final do dia, rumo ao aeroporto, pensei que teria gostado de retornar ao hotel, para dizer ao atendente que a caminhada fora melhor que o esperado e que o motivo era o MNPCT, a quem firmava – e firmo – meu muito obrigado.

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JOÃO MARCOS BUSH é juiz de direito da vara de execuções penais da Comarca de Joinville (SC) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. Publicado inicialmente no Le Monde Diplomatique.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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