Por Francisco Carrera –

Desta vez, muitos estariam aguardando um artigo especial sobre temas ambientais de relevância, a exemplo da última Conferência Mundial sobre Mudanças Climáticas, (COP26) que ocorreu na Cidade de Glasgov. Contudo, este artigo se dirige a uma das mais emocionantes homenagens já concedidas a seres humanos de grande valor. Trata-se da concessão do prêmio Camões 2021, à escritora moçambicana Paulina CHIZIANE.1 Este gesto certamente nos despertou o interesse em procurar saber quem era esta pessoa e de que maneira poderia aprender mais um pouco com suas obras. Não me esquivei da curiosidade e fui buscar seu curriculum e carreira e eis que senão quando me deparo com um verdadeiro impacto de autenticidade cultural. Falar sobre questões culturais se equivale a falar também sobre temas ambientais. No contexto conceitual de cultura, a temática transdisciplinar da sustentabilidade se revela. Escrever é um dom e ao mesmo tempo o um ato que nos remete a uma jornada desde a semântica até a autenticidade da alma. Desperta a consciência, conflita os valores interiores, questiona a razão e, às vezes, nos faz refletir sobre a hipocrisia do preconceito. Lendo a obra de Paulina CHIZIANE intitulada “Balada de Amor ao vento”, por um momento comprovamos que a nossa essência, por vezes, nos obrigava a seguir regras e recomendações costumeiras fantasiosas. Uma profunda abstração do “ambiente de hoje” com a consequente ida para um “ambiente da prosa e retórica” , nos faz concluir que a semântica da cultura é mais simples do que qualquer cátedra. A experiência empírica da convivência com o ambiente leva-nos a olhar para os nossos próprios umbigos, em uma forma de auto reflexão de nossa origem.

CHIZIANE nos remete constantemente para o nosso interior em suas obras, nos leva a um universo até então totalmente camuflado pelo mundo dos preconceitos e regras e por fim nos faz concluir que o amor é a peça fundamental de ligação entre os universos da cultura e do meio ambiente. Em toda a as suas obras a natureza está presente em suas narrativas e personagens. Sua sabedoria não se restringe à padrões de cor, raça, etnia, sexo, idade ou qualquer outro meio de classificação social. Em tempos de pensamentos radicais, CHIZIANE nos prova que para se ganhar destaque na literatura ou em qualquer outra área do conhecimento, estes critérios são totalmente desprezíveis e quiçá inexistentes. O excesso de avareza e ainda a limitação de espaço social através de podres poderes, também não ganham espaço quando os temas cultura e meio ambiente estão em consonância. A maior prova de que o fomento à leitura e a valorização da expressão do saber constituem importantes ferramentas para a instalação de asas ao conhecimento, está plenamente comprovada pela expressão da retórica e da dialética que CHIZIANE nos faz reconhecer e sentir ao lermos suas obras. Na verdade, ao nos debruçarmos em suas obras, temos a ligeira impressão de que nossos ancestrais estão carinhosamente falando conosco. É um regresso ao mundo da inteligência e da imaginação. E isto é arte, e também pura cultura. E, certamente, Meio Ambiente. Afinal, o conceito de meio ambiente trazido pelos doutrinadores do direito ambiental, está dividido nas esferas natural, artificial, cultural e do trabalho.2

Paulina CHIZIANE cresceu nos subúrbios da cidade de Maputo, anteriormente chamada Lourenço Marques. Nasceu numa família protestante onde se falavam as línguas Chope e Ronga. Aprendeu a língua portuguesa na escola de uma missão católica. Começou os estudos de Linguística na Universidade Eduardo Mondlane sem ter concluído o curso.

Participou ativamente na cena política de Moçambique como membro da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), na qual militou durante a juventude. A escritora declarou, numa entrevista, ter apreendido a arte da militância na Frelimo. Deixou, todavia, de se envolver na política para se dedicar à escrita e publicação das suas obras. Entre as razões da sua escolha estava a desilusão com as directivas políticas do partido Frelimo pós-independência, sobretudo em termos de políticas filo-ocidentais e ambivalências ideológicas internas do partido, quer pelo que diz respeito às políticas de mono e poligamia, quer pelas posições de economia política marxistaleninista, ou ainda pelo que via como suas hipocrisias em relação à liberdade económica da mulher. É a primeira mulher que publicou um romance em Moçambique. Iniciou a sua atividade literária em 1984, com contos publicados na imprensa moçambicana. As suas escritas vem gerando discussões polémicas sobre assuntos sociais, tal como a prática de poligamia no país. Com o seu primeiro livro, Balada de Amor ao Vento (1990), a autora discute a poligamia no sul de Moçambique durante o período colonial. Devido à sua participação ativa nas políticas da Frelimo, a sua narrativa reflete o mal-estar social de um país devastado pela guerra de libertação e os conflitos civis que aconteceram após a independência. Paulina vive e trabalha na Zambézia. O seu romance Niketche: Uma História de Poligamia ganhou o Prémio José Craveirinha em 2003.Em 2016, anunciou que decidiu abandonar a escrita porque está cansada das lutas travadas ao longo da sua carreira.

Em 2021, tornou-se a primeira mulher africana a ser distinguida com o Prémio Camões, a mais prestigiosa honraria conferida a escritores lusófonos, patrocinada pelos governos de Brasil e Portugal. Sobre o inédito reconhecimento, declarou Paulina: “Não contava com isso. Recebi a notícia e disse: ‘Meu Deus! Eu já não contava com essas coisas bonitas!’ É muito bom. Esse prêmio é resultado de muita luta. Não foi fácil começar a publicar sendo mulher e negra. Depois de tantas lutas, quando achei que já estava tudo acabado, vem esse prêmio. O que eu posso dizer? É uma grande alegria.”3

E alegria maior é poder acreditar que é possível contemplar a cultura como instrumento universal da sabedoria e expressão humana. Nem mesmo a pobreza ou a segregação racial é capaz de calar a voz daqueles que têm a cultura e o conhecimento como sua mola mestra de incentivo à vida e ao amor. Escrever uma música, um livro, uma poesia, um romance, cartas de amor, solfejos, peças teatrais, roteiros e quiçá até mesmo sambas enredos, são manifestações universais da expressão cultural humana, que não nos vincula a valores hedônicos ou socialmente seletivos. Nosso País, em especial, é banhado pela diversidade. Somos todos brasileiros, independentemente de cor, raça ou qualquer outro meio de distinção. A cultura nos nivela. Ela é o trampolim para a eliminação das desigualdades. Gestos como esta magnifica premiação, se comparam a gestos como as recentes nomeações de Fernanda Montenegro e de Gilberto Gil para Academia Brasileira de Letras. Compor músicas, e peças teatrais, também é cultura, é arte, é inspiração, é meio ambiente. Certamente nesta hora, assistimos e sentimos a energia de Machado de Assis, retornar à baila. É a força da cultura que está comprovando no decorrer do tempo, que temas indesejáveis como pobreza, cor negra ou parda, opção sexual e outras identidades, já não ganham mais espaço no obscurantismo. Meio Ambiente e Cultura transformaram-se em poderosas armas contrárias aos negativistas e ainda àqueles que não aceitam ascensão dos negros e pardos aos palanques da sabedoria e do Poder. A liberdade cultural é componente essencial à liberdade do Ambiente. Salve Paulina CHIZIANE! Salve Fernanda Montenegro! Salve Gilberto Gil! A vetusta e preconceituosa idéia de que Ser negro ou pardo, nos obriga a vencer duas vezes, já não ganha mais espaço no palco da sociedade, quando o ator principal é o conhecimento banhado de cultura. Se você que nos lê, não aceita. Respeitamos. Contudo, procure ler mais um pouco para que possam também galgar estes espaços. A bola da vez é o conhecimento, que por vezes não se resume apenas ao acadêmico e reconhece a sabedoria ancestral.

Viva a Ancestralidade, Viva a Consciência Negra! Somos todos filhos da Cultura! Homo sapiens sapiens! E membros da Era Antropocena.


1 https://youtu.be/2jG4BGhYpcQ

2 Para o ilustre professor Paulo de Bessa Antunes, meio ambiente é:

Um bem jurídico autônomo e unitário, que não se confunde com os diversos bens jurídicos que o integram. Não é um simples somatório de flora e fauna, de recursos hídricos e recursos minerais. Resulta da supressão de todos os componentes que, isoladamente, podem ser identificados, tais como florestas, animais, ar etc. Meio ambiente é, portanto, uma res communes omnium, uma coisa comum a todosque pode ser composta por bens pertencentes ao domínio público ou privado. (ANTUNES, Paulo Bessa. Direito Ambiental. 7º ed., revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Lúmen juris, 2004.

3 https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulina_CHIZIANE

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FRANCISCO CARRERA é advogado, mestre em direito da Cidade pela UERJ, Membro da União Brasileira da Advocacia Ambiental – UBAA, pós graduando em Paisagismo Urbano pela Faculdade Metropolitana de São Paulo, escritor, professor de Direito Ambiental e Agro Negócio do IBMEC, Professor de Direito Ambiental da Escola de Magistratura do Rio de janeiro – EMERJ, Coordenador do Curso de Pós Graduação da Faculdade AVM/UCAM, pós graduado em Auditoria e Perícias Ambientais, especialista em serviços ecossistêmicos, professor da Escola Superior da Advocacia – ESA, Presidente da Comissão de Direito Municipal da OAB-RJ , Membro da Comissão de proteção e Defesa dos Animais da OAB-Conselho Federal, foi professor Convidado do MBE em Meio Ambiente da COPPE/UFRJ, é Coordenador Geral da Biodiversidade da Secretaria do Ambiente e Sustentabilidade do RJ – SEAS, É Membro da Comissão de Direito Agrário e Urbanístico do IAB-RJ. Autor de diversas obras de Direito Ambiental e Urbanístico. É coordenador de biodiversidade da Secretaria do Ambiente e Sustentabilidade do Estado do Rio de Janeiro e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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