Por Ricardo Cravo Albin –
Costuma-se dizer por aqui – neste país tão habitualmente injusto ou até desmemoriado em relação aos brasileiros ilustres – que as homenagens só chegam – quando chegam – depois que as pessoas que as merecem já estão esquecidas desde muito.
E mesmo assim, nem sempre. O país dá-se ao desperdício – para não dizer desplante – de abandonar filhos fundamentais ainda no velório. Nunca posso esquecer de uma frase ácida (mas verdadeira, já se verá) que o saudoso Paschoal Carlos Magno – aliás, também já agora vítima da amnésia nacional – repetia todas as vezes que me visitava no Museu da Imagem e do Som: “Pior, meu caro, que ter que morrer é o Brasil te matar de novo, esquecendo a memória dos notáveis com uma sem-cerimônia de vândalo predador”. Numa das vezes em que Paschoal repetia suas sábias considerações sobre a fragilidade da nossa amnésia memorial a tudo ouviu o poeta Nélson Cavaquinho, que tinha ido ao MIS me mostrar o seu último samba e pedir emprestado algum dinheiro. Uma semana depois o bardo da Mangueira chegava à minha sala e entoava o samba “Homenagem”, em que se apressava a clamar: “Sei que ao morrer/os meus amigos vão dizer/que eu tinha um bom coração”. Para concluir: “Mas se quiser fazer por mim (alguma homenagem)/Que faça agora(e não morto)”.
Todo esse preambulo – que já se alonga mais que queria – para dizer que nem tudo sempre ficou perdido no Brasil. Recordo-me que a ECT saiu-se à frente, já há alguns anos, quando homenageou os oitenta anos de Dorival Caymmi, ainda em pleno viço, com um selo portando sua imagem. Uma alegria justa para o ilustre baiano. E para todos nós brasileiros que reclamamos e nos afligimos com o silêncio imposto pelas autoridades a quem constrói, dignifica e preserva o belo e o bom que há no Brasil.
Na verdade, homenagear um vulto do porte de Caymmi é consagrar o poder de síntese do gênio brasileiro.
A compreensão do que possa vir a ser a palavra síntese, no seu exato sentido etimológico, filosófico e até sacro, é exercício duríssimo para as cabecinhas cheias de caraminholas de qualquer adolescente.
Eu me lembro que foi o poeta Manuel Bandeira – ao lado de quem eu viajava pontualmente, da década de 50, a cada segunda-feira, oito da manhã, no bonde Laranjeiras, direção Tabuleiro da Baiana – o único que me fez entender com clareza e simplicidade o significado mais opulento da palavra.
Ali mesmo no bonde número dois, formal no seu largo terno cor de burro-quando-foge, mas paciente e paternal, o poeta respondeu à indagação quase impertinente do adolescente falastrão, metido no dólmã do Colégio Pedro II, internato: “Meu filho, você já deve ter ouvido este novo samba de Caymmi que todo mundo está cantando, ‘Maracangalha’. Pois bem, preste atenção aos versos e observe que o lugar Maracangalha não é senão a síntese mais perfeita da felicidade, do paraíso, tal como eu tentei sentir na minha Passárgada. Portanto, meu rapaz, síntese é a abreviação final da arte de sentir alguma coisa. Observe igualmente que a música do Caymmi é também assim, é síntese…”.
A partir daí, comecei a observar em minúcias a obra de Caymmi, cujo trabalho de síntese reflete como pouquíssimas outras a beleza e a simplicidade da música brasileira.
E se bem que o poeta Bandeira não me tivesse explicitado a simplicidade que perpassa por toda a coleção de canções do nosso menestrel baiano, logo conectei o conceito de síntese ao conceito de simplicidade de sentir, de fazer, de se expressar.
Caymmi, por sinal, sempre foi de uma simplicidade exemplar que comoveu e enterneceu em todos os níveis. Suas letras são quase sempre curtas e despojadas de brilharecos, de fulgores, de preciosismos poéticos. Pelo contrário, a poesia de Caymmi é exata, enxuta, franciscana. Ele me parece – se o leitor me perdoa a comparação – um poeta do despojamento, fincado muito mais no comentário corriqueiro do cotidiano de um Manuel Bandeira, digamos, do que na grandiloquência de um Castro Alves, tão baiana, tão exaltada, tão barroca.
De qualquer modo, ninguém mais baiano que Caymmi na arte de viver, na sabedoria de captar a beleza, saboreando os pequenos e os grandes prazeres, gole a gole. Desse mesmo modo, ele sempre burilou e esculpiu as letras de suas canções. Com vagar e apetência.
Agora, porque cabe o registro de que Caymmi completa, neste 2024, 110 anos de nascido, tenho a necessidade de celebrar sua queridíssima memória.
E ninguém, sequer uma nota, registrou qualquer afago ao inestimável Dorival Caymmi em seus 110 anos de aniversário.
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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