Por Siro Darlan –
Série Presídios IX.
Dia 24 de maio é dedicado ao Dia do Detento. Uma reflexão que precisamos fazer em nosso processo civilizatória. Enquanto convivermos com o sistema de prisões humilhantes e desumanas, não podemos considerar que vivemos numa sociedade evoluída. A contrapartida para o cometimento de crimes precisa ser compatível com a evolução da humanidade. Esse tema tem sido objeto da filosofia, da medicina, do direito e da literatura. Já foi explorado por Graciliano Ramos, Fiódor Dostoiévski, Henri Charrière e Mano Brown, dentre outros, os cárceres e sua população constituem uma contraditória marca das sociedades modernas.
Criticamos tanto os sistemas autoritários, mas precisamos olhar para nosso umbigo, ou como diz nas sagradas Escrituras, tirar a trava que está em nosso olho antes de apontar os excessos dos outros. Nos campos de prisioneiros da Sibéria, os famosos Gulags, Dostoievski escreveu Recordações da Casa dos Mortos, do porões da ditadura Graciliano escreveu memórias de um Cárcere. Nas prisões atuais, nem livros deixam os prisioneiros levar para suas celas. O que nos leva a sermos piores que os mais afamados carcereiros da história? Sádicos e narcisistas festejamos quando pessoas são presas!
Nosso gulag, ou “navio negreiro” tem um singularíssimo, de tremenda gravidade, seja pela falta de análise crítica quanto aos criminosos de “colarinho branco”, que nunca chegaram a integrar as nossas populações carcerárias; seja pela superficialidade da análise científica acerca das grandes legiões de excluídos sociais, formadas basicamente por pretos, pobres e prostitutas que superlotam os nossos presídios sem culpa formada, sem revisão das causas de decretação de suas prisões processuais, sem razoável duração do processo até suas condenações definitivas, e até mesmo depois de cumpridas as suas penas. Sem qualquer aprofundamento sobre o tema, só por conta destas superficiais observações, públicas e notórias, dá para afirmar que vivemos em um País elitista, injusto, desumano e cruel.
A derrota do sistema presidiário: covas de lento extermínio; decúbito moral; universidade dos líderes comandantes das facções criminosas; laboratório da química da vingança, produto do inconsciente psicopático. A ilusão recuperativa queda-se no chão das pocilgas, sedes das escolas preparatórias das bombas destruidoras da ordem, da restauração, da paz social. É só ver seu trabalho demonstrativo da miséria em cenários dos depósitos da alimentação deteriorada, dos banheiros imundos, dos varais improvisados para secar farrapos.
A lição sociológica e civilizatória tem pressa.
Vamos a estória de hoje contada por um egresso que se dedica às causas sociais em sua comunidade:
“Em 1980 fui preso roubando uma mansão em Praia Grande me levaram para a delegacia de Praia Grande. Lá chegando me colocaram em uma cela sozinho, por volta de umas 13 horas tudo tranquilo, até que por volta de umas 15 horas colocaram um maluco na minha cela. Até então tranquilo, mais não demorou muito o maluco cismou comigo e começou a me agredir com um cabo de vassoura.
Como eram duas camas, uma embaixo e outra em cima, eu subi para a de cima e lá fiquei me protegendo, e não deixando ele subir. Era um cara moreno forte alto e eu magrinho fraquinho. Pensava pra mim este cara se me pegar vai me matar e não dava nem para mim chegar na grade. Que merda! Mas quando chega por volta de umas 22 horas chega outro preso: um cara muito forte e com um olho de vidro, o cara parecia um demônio e colocaram ele na cela que estava eu e o maluco.
Aí fiquei mais tranquilo, mas não sabia qual era a do cara. Aí ele estava apavorado e puxou um papo comigo, falando que era lá de Minas Gerais, e que não podia ser transferido pra lá se fosse morreria. Que ele estava muito procurado lá em Minas, aí ficamos conversando e como o maluco estava entrando no meu caminho eu falei pro cara só tem uma forma de você não ir pra Minas Gerais, é matar este maluco aí e assinar o crime dele porque sendo assim você vai ter que sumariar o crime dele e vai ter que ficar aqui. Eu falei pra ele, eu te ajudo e pegamos ele o cara na mesma hora falou então vamos matar ele. Eu falei vamos fazer uma corda com estes lençóis e agarramos e matamos ele. Aí você começa a gritar e chama os polícias e quando eles chegarem você fala que matou ele.
Então assim foi feito o nome do cara era Sebastian Salema, ele chamou os policiais e falou eu matei este maluco que estava me perturbando. Deus sempre esteve ao meu lado e aí os polícias me mandaram embora porque o juiz corregedor viria na delegacia. Aí passado um tempo, e vou preso e fui para o Presídio Central. Aí um belo dia vejo este cara passando na galeria pois ele havia virado veado, eu cumprimentei ele passando. Então os caras que estavam comigo na cela falaram ele é mulher de um cara lá no quinto andar. Eu falei pros caras, caralho este cara chegou na delegacia que eu estava matou um maluco lá para não ir para Minas Gerai porque ele falou se fosse iriam matar ele. Caraca irmãos o cara com está pinta de demônio todo fortão, virou menina kkkkkk”.
Concluindo, vale a pena ler o poema Eu tive, de Weverton Ucelli da Silva, poeta do livro Corpo preso, Mente livre, versos aos verbos de um detento:
Erros do passado me fazendo sofrer no presente.
Ofuscando meu futuro, berimbolando minha mente.
Recapturado em um mandadomandado.
Preso em outro estado, sofrendo pra caralho.
Muito longe da família, isso me sufoca.
Sem visita, sem jumbo, sobrevivo só de cota…
Eu tive que me acostumar, dormir sem você.
Eu tive que me acostumar, acordar sem te ver.
Eu tive que me acostumar.
LIBERDADE.
Leia também:
1- A roubada dos presídios federais – por Siro Darlan e Raphael Montenegro
2- Para que servem os presídios? – por Siro Darlan
3- Como transformar seres humanos em seres sem dignidade humana – por Siro Darlan
4- A guerra aos povos pobres e negros com nome de “guerra às drogas” – por Siro Darlan
5- O dia que a casa caiu – por Siro Darlan
6- Isso é uma vergonha, diz o Ministro Gilmar Mendes – por Siro Darlan
7- “Bandido bom é bandido morto” – por Siro Darlan
8- A pena não pode passar da pessoa condenada – por Siro Darlan
SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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