Por Siro Darlan e Silvana do Monte Moreira –

Série Especial: ADOÇÕES – Parte XV. Colaboração do Juiz Fernando Moreira Freitas da Silva, Juiz de Sidrolândia – MS, Vice Presidente da Comissão de Adoção do IBDFAM.

Mesmo diante da não observância dos tribunais em relação ao cumprimento do Provimento nº 36/2014 do CNJ, lamentavelmente, o próprio CNJ tem dado entendimento de que o referido provimento é apenas recomendatório, carecendo de coercibilidade. Esse entendimento acaba inviabilizando a efetividade do seu próprio ato administrativo, o que se tem visto ao longo de seus anos de vigência.

Destoando de sua jurisprudência anterior, o CNJ deu um importante passo na efetivação dos direitos fundamentais de crianças e de adolescentes, ao julgar procedente o Pedido de Providências nº 0005104-65.2021.2.00.0000, apresentado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM e pela Associação do Movimento de Apoio à Adoção do Estado do Rio de Janeiro – AMAR, para determinar ao Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul que reinstalasse a Vara da Infância e da Adolescência da Comarca de Dourados, a segunda maior cidade do Estado.

A louvável decisão do CNJ, ao invocar o princípio da vedação ao retrocesso, avançou na tutela dos direitos da criança e do adolescente, já que reconheceu a relevância de uma vara da infância e da adolescência com competência exclusiva. Isso significa que o juiz que julga processos da infância e da adolescência não poderá julgar matérias diversas, tais como outros processos cíveis, previdenciários, execuções fiscais, criminais etc.

A relevância da competência exclusiva se dá em razão de a Constituição Federal brasileira assegurar prioridade absoluta às crianças e aos adolescentes.

Isso significa que o processo relativo a esse público hipervulnerável necessita de célere julgamento, o que torna difícil diante de processos de natureza diversa, retirando-se o foco da criança e do adolescente. Não devemos nos esquecer de que, além do julgamento de processos, o juiz também tem uma série de atividades administrativas relacionadas a esse público mais vulnerável, tais como o acompanhamento e a fiscalização das atividades de acolhimento institucional, de acolhimento familiar, de apadrinhamento etc.

Quanto maior for a especialidade em criança e adolescente, maiores serão os índices de conhecimento da matéria por juízes e servidores, de habilidade na operacionalização do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento – SNA, de oferecimento de cursos de preparação à adoção com o adequado preparo dos pretendentes à adoção e das crianças e dos adolescentes aptos à adoção etc.

Ainda temos muito a avançar. Vale lembrar que muitas comarcas brasileiras, com mais de 200 mil habitantes, ainda não têm a sua vara especializada em criança e adolescente. Muitas daquelas que a têm, ainda cumulam a competência em idosos, um público que também exige prioridade e que tem necessidades próprias diversas das crianças e dos adolescentes. Outras cumulam processos de medida de proteção e de atos infracionais, ambos com complexidades totalmente distintas. Assim, nota-se que temos muito a avançar, porém sem jamais retroceder nos direitos fundamentais já conquistados.

Vamos aos comentários dos adotados e adotadas:

1. Carina Moura

Meu elo de amor.

Era uma vez a história de uma mulher que é filha por adoção e que por muito tempo não conseguia contar sua versão da vida e do que ela havia se tornado. Muitos de nós, filhos por adoção, temos receio de enaltecer a grandiosidade e a veracidade dos fatos envoltos ao assunto adoção.

Muitas vezes, nós somos reprimidos por pessoas que não conseguem entender e compreender a importância deste assunto, bem como também a magnitude da beleza do olhar com paixão e o coração cheio de esperança de uma criança por adoção.

A história se inicia no coração dos meus pais, que disseram um sim para a vida inteira. Um sim com verdade, sensibilidade e muito amor. E partir daí, fui envolvida com tudo o que há de mais importante na minha vida: minha família.

Acredito na força que o amor tem sobre as pessoas, e diante deste sentimento tão grande que venho nutrindo em minha alma, tenho imensa gratidão a minha progenitora por ter sido tão minha mãe, que ao me carregar e me sentir por tanto tempo, percebeu que eu teria muito mais oportunidades e um destino mais grandioso se não estivesse com ela fisicamente, e sim através desse gesto, permaneceria em meu caminho por toda vida.

Minha vida, minha história, meus sentimentos e minhas ações foram construídos e fortalecidos com minha família. Aos meus pais dedico tudo aquilo que sou e ao que me tornei: uma pessoa humanizada, sensível às pequenas e grandes causas, amorosa e gentil. Enquanto que a minha determinação e companheirismo, aprendi com o exemplo de meus irmãos.

Quando tive a minha primeira queda, foram os meus que me ensinaram a levantar, erguer a cabeça e tentar novamente. Quando eu chorei, foram os meus que me fizeram rir até eu entender que a vida é difícil, mas com alegria tudo se transforma. Quando conquistei, foram os meus que estavam lá me aplaudindo e dando mais ânimo pra novas conquistas. Quando pensei que não era merecedora de tudo o que tenho, foram os meus que disseram o quanto que sou importante para eles.

Eu nasci do coração da minha família, e não há elo mais incrível do que esse. E continuo levantando a bandeira: que possamos considerar justa, todas as inúmeras formas de amar e de amor. Viva a minha vida! Viva a minha história!

Viva por ser filha por adoção!

2. Shirley

É com muita alegria que contarei um pouco da história de minha vida. Aos três anos aproximadamente fui encaminhada a uma instituição conhecida na cidade onde moro, de “Associação Lar Menino Jesus“, entidade esta conhecida como orfanato, na época, somente para abrigar meninas.

Este local era mantido por freiras e um bispo, Dom Jorge Marcos de Oliveira, verdade é que eu não sei ao certo o motivo pelo qual fui encaminhada para aquele local, e, de certo com aquela idade, não me recordo muito.

Passo a descrever aquilo que tenho na memória, tratava-se de duas casas, uma para crianças e outra para adolescente, lógico que eu morava na casa onde existiam as crianças, nosso quarto era imenso, com várias camas onde nós dormíamos, o local para as refeições, na maioria das vezes sopas, também era imenso, um refeitório para todas nós, com uma dispensa, onde tinha coisas gostosas e nós, as meninas, muitas vezes íamos até lá pegar leite ninho, chocolates e outras guloseimas, porém quando as freiras percebiam, íamos para o ” castigo “.

Na época eu contava com uns sete anos, e, desconhecia o que era viver em uma família, porque, no decorrer de minha vida, sempre estive institucionalizada, portanto, não tinha irmãs ou irmãos, pai, mãe, tias; o que conhecia eram as freiras cuidadoras e as funcionárias da casa que, as vezes nos dispensavam carinho de “tias “ .

O interessante é que comecei a entender que gostaria de ter uma pessoa que tivesse colo para me abrigar, acalentar, cuidar, e acima de tudo me sentir amada, mas não tinha. Tudo era de todos, as pessoas que por alí passavam, iam embora e não voltavam. E nós, ficávamos por alí, sem carinho de mães, pais, enfim carinho de familiares.

Assim aconteceu comigo e com as demais meninas do colégio, que era esta orfanato, desde muito cedo soube o que era abandono, e, o que era não ter o carinho dispensado apenas para mim.

Muitas meninas recebiam visitas de parentes, eu não. Muitas meninas, aos domingos, saiam para passear com seus familiares quando estes vinham visita-las, eu não. Muitas recebiam presentes de Natal destes parentes, eu não; isto porque, eu não tinha uma família.

Enfim, minha família, que eu considerava eram todas as meninas com as quais convivia. Não era fácil morar no internado, pois por vários anos fui taxada como a “menina do orfanato “, na escola que eu estudava. Além disto, eu ia para escola sozinha, acenando para as coleguinhas que ficavam no colégio; na escola as coleguinhas levavam lanches saborosos, as vezes eu recebia uma mordida de algum lanche que me ofereciam, isto porque eu não levava, e tomava um pouco de sopa que na escola ofereciam. Eu ficava chateada com esta situação. Não tinha cadernos e livros coloridos, lápis bonitos, apenas aqueles que recebia do orfanato; simples e iguais para todos.

Interessante, eu não entendia, mas muitas crianças foram deixando o orfanato e indo embora, depois de muitos anos eu soube que isto acontecia porque a lei havia mudado e não era mais permitido orfanatos daquele tamanho, e, como a maioria não era órfãs poderiam voltar para a família.

Nem tudo era ruim, eu amava quando chovia e, dava enchente no orfanato, porque assim, todas nós, meninas adolescentes e nós, subíamos em uma caminhão e íamos contentes, alegres e felizes, para um outra casa mantida pelo bispo. Era muito divertido, mal sabia que tudo aquilo era perigoso demais. Mas, era uma forma de sair da instituição e se divertir.

A noite todas íamos para aa capela rezar, mas eu não gostava muito porque as músicas tocadas pela irmã Glorinha eram tristes e, davam sono na maioria de minhas coleguinhas, e a mim também.

Sabe, por melhor que fosse o orfanato, jamais seria como se fosse um lar; via muitas meninas indo embora em adoção, as famílias que queriam adotar, vinham e levavam embora minhas amiguinhas, eu sobrava, não era o perfil de criança a ser adotada, era uma criança parda, olhos claros, cabelos carapinhas, muito extrovertida, para não dizer bagunceira, eu aprontava demais, levada, assim não tinha oportunidade de adoção.

Sabe, era difícil entender que não era fácil não ter quem se preocupasse com você, e, você ser tratada como um “bando“, não ter ninguém eu me acalentasse, cuidasse, e acima de tudo se sentir amada incondicionalmente. Lógico que as freiras não davam conta disto. Tudo era de todos, até mesmo a dispensa de carinho, nada individualizado.

Uma vez, já adulta, entendi que por mais que possa parecer que abandono “é uma situação abstrata, sentir-se abandonado é a sensação mais concreta que um ser pode sentir, pois abrigada ou acolhida, em uma instituição, nunca se equiparará a viver no seio de uma família, seja ela rica ou pobre, simplesmente família.

Veja bem, quando ainda em idade escolar, nunca pude levar um coleguinha para minha casa, por que (interrogação), simples assim, que casa se eu não tinha, e no colégio não era permitida a entrada de outras pessoas. É triste não ter referência, não ter colegas que possam te visitar; eu tinha apenas um lugar para morar…

Enfim, esta é a história de minha vida dos três aninhos aos oito. Nossa que legal, um homem apareceu na instituição, ele era feio demais, alto, falava um idioma que eu não entendia, fazia brincadeiras que eu não conhecia, não me ajudava a fazer minhas lições de casa, enfim, uma pessoa estranha com cabelos longo e que andava de forma estranha, talvez por causa da altura.

Bom, sempre o conheci na entidade, nunca tinha saído com ele, mas eu gostava que ele trazia balas, chocolates e outras guloseimas para todas nós, e assim fui me afeiçoando com ele, que até me ensinava holandês, idioma de sua terra.

Com a saída do internato de todas as meninas que tinham família, algumas que “sobraram “, inclusive eu, fomos realocadas para outros locais. Fui levada para uma casa pequena, num bairro pobre da periferia onde existiam freiras com aqueles abito s estranhos, compridos, e que, como ela Pe. Adriano, falavam aquela língua horrorosa que eu não entendia nada.

Sabe, a cultura e alimentação delas era diferente, comiam muita batatas, verduras e carne, não tinha “comida brasileira, arroz e feijão“, eu sentia muito esta mudança, então fugia e ia para a casa da vizinhança que era pobre demais, pedir “comida brasileira“.

O rapaz que cuidava de mim no colégio, era um seminarista que após, ordenou-se padre, ele não podia ficar comigo por ser estrangeiro, homem, não ter casa para me acolher, então me levou para a casa das freiras.

Com o passar dos anos, ele resolveu me adotar, mas aí começamos outra história, imaginem as dificuldades encontradas na lei da época, o preconceito, etc. Fui chamada diversas vezes no Juizado para dar meu depoimento, aquele ambiente para mim era horrível, mas tinha que ir. Ele explicava que eu iria mas que não ficaria lá, ele iria me trazer de volta. Eu confiava nele e então ia.

Aquele local frio, com pessoas engravatadas que falavam difícil… nossa que horror, eu tinha muito medo.

Sei que, havia um juiz muito legal Dr. Alberto Silva Franco e um promotor Dr. Fábio Moscariello que foram meus anjos da guarda. Sabe por que “interrogação“.

Eles instruíram o Padre como fazer para que adoção desse certo, ele, estrangeiro, homem, solteiro adotar uma garota, consegui ser legalmente adotada por ele. Vocês devem questionar se tenho ou tive problemas psicológico, posso dizer que não, minha vida foi tranquila, sempre fui uma menina peralta e que sempre estava na defensiva, porém isto nunca me atrapalhou, até porque tive que me defender sozinha, durante anos de minha vida.

Padre Adrianus Antonius van der Zwaan, meu pai, cuidava de uma obra assistencial na época chamada Centro Comunitário Dr. Alberto Silva Franco e que passou a ser denominada Centro Comunitário Dom Jorge Marcos de Oliveira em homenagem ao juiz e ao bispo, que cuidava de muitas crianças do bairro e que ali estavam a título de creche, enquanto seus pais trabalhavam, era então meu companheiro, amigo, cuidador, enfim, meu grande amor, meu pai.

Pessoal, tenho que dizer que os anos foram se passando e todas aquelas freiras da casa em que fui morar na periferia, foram retornando para Holanda, estavam aqui apenas como missão, e, uma delas ficou convivendo comigo e outras duas crianças, uma delas fugiu para conviver com sua família biológica, restando apenas eu e uma outra criança que também foi adotada pelo padre.

Eu, fiquei incomodada por várias anos de minha vida, até enquanto adulta pois na minha certidão de nascimento só constava o nome do pai, então a curiosidade da sociedade era imensa, e sempre me perguntavam se eu não tinha o nome da mãe.

Bom, a história é que, a freira que restou, acabou casando com o padre; eu casei com um seminarista, tive uma filha linda de nome Gabriela, e, somente consegui fazer constar o nome da freira como minha mãe apenas após 33 anos, sendo que meu marido teve que anuir a minha adoção, naquele tempo não existia adoção sócio afetiva.

No decorrer da vida, prestei concurso público, e, pasmem… fui trabalhar na Vara da Infância e Juventude, antigo Cartório de Menores, fui também comissária de menores e assisti e vi, vários casos parecidos com o meu, fiz a faculdade de jornalismo e, de direito. De lá para cá minha vida é dedicada a todas as crianças e jovens que necessitam ter uma família.

Fui uma das fundadoras do Grupo de Apoio a Adoção Laços de Ternura, e faço parte hoje do Movimento Nacional de Adoção e do Instituto Nacional de Adoção e Convivência Familiar, onde nestes 30 anos de caminhada, conheci várias pessoas que são minha referência para esta jornada tão árdua, podendo citar Dr. Siro Darlan, Dr. Antônio Carlos Malheiros e tantas outras pessoas que não conseguiria nominar.

Só posso agradecer a família que me adotou, pois tiveram que ter muita paciência em comigo conviver.

Aprendi e acredito na defesa das adoções, pois quando olho para trás e visito as páginas da minha vida, elas não estarão em branco, por isto posso contas minha experiência, minha história e contribuir para a formação de mais família formadas pelo amor, enfim, acreditando que apesar de tudo, viver vale a pena, lutar sempre, desistir jamais !!!!

Leia também:

Dia 11 estreia a série “Adoções”

ADOÇÕES I – Família Harrad Reis

ADOÇÕES II – Do direito à convivência familiar e comunitária

ADOÇÕES III – Obrigações de cuidado

ADOÇÕES IV – Condições para adoção

ADOÇÕES V – O processo de adoção

ADOÇÕES VI – Cadastro Nacional de Adoção

ADOÇÕES VII – Adoção no Brasil

ADOÇÕES VIII – Adoções Internacionais

ADOÇÕES IX – Adoção Internacional

ADOÇÕES X – Famílias

ADOÇÕES XI – Os Grupos de Apoio à Adoção

ADOÇÕES XII – Prioridade absoluta 

ADOÇÕES XIII – Grupos de Apoio á Adoção

ADOÇÕES XIV – Provimentos 36 e 116 do CNJ

 

Colaboração do Juiz Fernando Moreira Freitas da Silva, Juiz de Sidrolândia – MS, Vice Presidente da Comissão de Adoção do IBDFAM.

SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ. siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com

SILVANA DO MONTE MOREIRA – Advogada, militante da Adoção Legal, mãe sem adjetivos. Presidente da Comissão de Direito da Criança e do Adolescente da OAB/RJ (2016/2018, 2019/2021), coordenadora dos Grupos de Apoio à Adoção Ana Gonzaga I e II, membro fundador da Comissão de Direito Homoafetivo da OAB-RJ, Representante para o estado do Rio de Janeiro da Associação Brasileira Criança Feliz, dentre outras atividades que desempenha. @silvanamonteadv


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