Por Siro Darlan e Silvana do Monte Moreira –

Série Especial: ADOÇÕES – Parte VIII.

ALYRIO CAVALLIERI – Ex-Juiz de Menores; Secretário da União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro; Vice-Presidente da Associação Internacional de Magistrados da Juventude e da Família. Falecido a 12 de novembro de 2012. Foi o melhor juiz de menores, como ele gostava de insistir, mesmo depois que o Estatuto da Criança e do Adolescente passou a denominar Juiz da Infância e da Juventude. Foi precursor e inovador, jamais superado na arte de amar as crianças e garantir seus direitos.

Eis o que ele conta

DR ALYRIO CAVALLIERE E TAÍS CAVALLIERE – 2012

Em 1970, uma senhora sueca, viúva, que morava no Rio, frequentava o orfanato Romão Duarte, onde, como voluntária, ajudava com as crianças. Um dia, procurou o juizado e me disse que tinha pena de crianças que jamais eram visitadas por parentes, enquanto na sua terra, a Suécia, casais queriam filhos e não conseguiam. Conversei som o curador Araújo Jorge e a assistente social Julieta Pires. Vamos experimentar? Mas não havia nenhuma lei, nem jurisprudência, nem prática anterior conhecida. Inventamos três condições: 1. vamos pedir a lei de lá, para saber se nossas crianças não seriam pessoas de segunda classe naquele país; 2. vamos pedir um estudo da família, como exigimos dos brasileiros aqui e 3. só vamos mandar criança que não tenha nenhuma possibilidade de obter família brasileira. Fizemos os processos, tudo certo, o estudo das famílias era uma beleza, com exames, testemunhos e até recomendação do cônsul brasileiro de lá. Mandamos 7 crianças.

Vinte anos depois, pessoal da NIA, que trata de adoção no governo sueco, vem ao Rio. Pedi para localizarem os brasileiros que tinham ido para lá. Recusaram-se. Mas botei no bolso de um deles uma lista com nomes e endereços das famílias. Dois meses depois, vem uma carta: haviam encontrado seis. Entrei em desespero. Que bobagem havia feito: e se algum estivesse preso, miserável, sei lá. Passaram-se mais dois meses e vieram os relatórios. Telefonei para a TV-Globo. O resto já sabem: o Fantástico fez aquela reportagem. Maria Lundim é professora de dança clássica. Julie Nordvall trabalha em clínica de idosos. Marcos é enfermeiro. Fátima, que fora com 9 anos, perdeu o pai e herdou algum dinheiro. Lourdes é secretária e joga golfe. David é alpinista e faz o serviço militar.

Passam-se 5 anos e chamam-me no consulado. Havia faltado um. Mostram-me a foto, numa revista, de um rapaz que parece astro de cinema: é o Matias. É guia de turismo. Levou um grupo à Turquia, o ônibus pegou fogo, Matias salvou muitos, e hoje é um herói sueco.

Em junho de 1996, Maria e Julie vieram ao Brasil com suas mães. Visitaram a Romão Duarte várias vezes, queriam conhecer a casa de onde saíram. Choravam o tempo todo. Trouxeram malas de presentes para as meninas de lá. Almoçaram lá em casa. Comeram feijão com farofa e beberam guaraná. São morenas e lindas e só falam inglês e sueco. Eu estava tão emocionado que fingi que almocei. Cantaram uma canção sueca que falava que nosso encontro já estava escrito, há muito tempo. Não é uma história bonita? Aquelas três regrinhas, citadas lá em cima, inventadas no Juizado do Rio, há tantos anos, hoje fazem parte de leis, tratados, convenções e até do Estatuto da Criança e do Adolescente, no meio de muita impropriedade que está nele. São puro bom senso.

Mas teriam funcionado sem algo que não está na lei, o amor?

Vamos agora aos depoimentos de nossos(as) adotados(as):

Williams Amaral

Olá meu nome é Willams Amaral e eu nasci para a minha família aos 18 anos quando eu já estava saindo do abrigo. Tive uma família biológica desestruturada que não conseguiu cuidar de mim. Morei nas ruas de Recife quando eu era criança por uns três anos mais ou menos onde vivi muitas experiências difíceis. Depois pedi ajuda e através do conselho tutelar fui morar em um abrigo. Passei por cinco abrigos durante oito anos. Também foi uma experiência difícil porque já cheguei com 10 anos, onde fui muito discriminado e sofri muitos preconceitos.

Essa também não é uma idade em que os pretendentes aceitam adotar porque consideram a gente “velho demais” para ser filho. E com isso o tempo passou. Não tive acesso a uma boa educação, eu ia na escola mas não tinha nenhum tipo de acompanhamento, mal sabia ler e escrever, não sabia as contas básicas; não tive acesso a atendimento psicológico, não tive padrinhos, não tinha visitas, não tinha carinho e nem amor.

As pessoas às vezes me falam que morar em abrigo é estar protegido e ter assegurados os direitos das crianças e adolescentes, mas isso não é o que acontece na realidade. Mesmo em casas de acolhimento, não somos acolhidos como deveria ser. Não tive acesso a um curso profissionalizante, não fui orientado ou preparado para o mercado de trabalho, não tinha noção de como eu iria viver no dia que saísse do abrigo sem nenhuma estrutura emocional ou financeira. Não tive educação sexual, nunca fui orientado sobre qualquer coisa sobre isso.

Não podia sair para passear como um adolescente que tem família, não podia ir ao shopping ou ao cinema a não ser com o pessoal do abrigo. Não podia namorar, pois eu era um menino de abrigo. Era discriminado na escola, pois eu era um menino de abrigo. Os próprios “cuidadores” nos discriminavam. Gostaria que algumas pessoas passassem uma semana num abrigo como um “menino de abrigo” pra ver como é difícil não ter família, não ter amor, nem apoio e nem com quem contar.

Eu nem sabia que poderia ser adotado por uma nova família, até eu ser convidado para uma campanha de adoção tardia (crianças acima de 7 anos). Foi a melhor coisa que me aconteceu até aquele momento, pois era a única chance que eu tinha de ter uma família, pois eu já estava no SNA (Sistema Nacional de Adoção) e não tinham pretendentes habilitados para meu perfil. Achavam que eu não poderia ser filho. Mas através da campanha que me deu voz e visibilidade, minha família me encontrou e hoje sou muito, muito feliz e realizado.

Hoje tenho tudo que sonhei, mãe, pai, irmãos, tios, avós, primos e uma família enorme que que me dá muito amor e carinho. Tenho muito apoio da minha família. Hoje eu faço faculdade, daqui há um ano e meio eu vou me formar e fazer uma pós graduação. Tenho um emprego onde entrei como jovem aprendiz, fui efetivado e já fui promovido duas vezes. Posso passear, namorar e ter uma vida normal de um jovem de 23 anos.

Quem é contra as campanhas de adoção que mostram as crianças e adolescentes, não tem noção do que é viver sem família, sozinho no mundo, sem ninguém que você possa conviver e ter amor. Hoje tenho uma família que eu amo! Nunca é tarde para ser filho!

Filho de Lucas

Quando criança, nunca gostei do fato de precisar explicar o vínculo, não reconhecido, com meu pai. Meu pai se chama Lucas, mas em todos os meus documentos e perante a sociedade o nome que eu precisava informar era o do meu genitor e, na maioria das vezes, eu precisa explicar como as coisas funcionavam. Essa insatisfação dos “documentos” nos motivou a buscar o nosso reconhecimento e isso aconteceu no ano de 2019. Mas nossa história começou muito antes de 2019.

Em 1994 ganhei um padrasto. O que eu não sabia é que esse padrasto me escolheria para ser sua filha e eu o escolheria para ser meu pai. Quando eu completei 7 anos resolvi formalizar o primeiro reconhecimento dessa paternidade (talvez mais importante do que o processo da paternidade socioafetiva): escrevi, com os garranchos que me acompanham até hoje, uma cartinha para ele com a pergunta direta, para não dar tempo de pensar: “Posso te chamar de pai?” e ainda coloquei dois quadradinhos indicando o “sim” e o “não”. Para minha nada surpresa ele marcou o sim.

O primeiro reconhecimento, o poder chamar publicamente de pai, o colocar o devido nome na relação, era muito importante para mim. Afinal, eu não entendia porque chamava a pessoa que cuidava de mim como se eu fosse sua filha por seu nome próprio. Na época eu chamava o meu genitor por seu nome próprio e isso sim fazia sentido. A família estranhou, questionou, muitos não entendiam o motivo para se chegar tão longe, alguns encararam como falta de responsabilidade por parte de meu pai (estavam com medo de que caso ele e minha mãe se separassem, eu ficasse sem nenhum pai).

Hoje, refletindo sobre o avanço das relações socioafetivas, é possível compreender o receio. Apesar de ter combinado de que ele me chamaria de filha e eu o chamaria de pai, ainda faltava alguma coisa. Faltava o reconhecimento do Estado; a mudança na certidão; a legitimidade. Os anos passaram, me formei em Direito com ênfase em relações familiares e fui atrás do nosso reconhecimento.

Dessa vez, sem precisar explicar nada para ninguém, fomos a um cartório extrajudicial dar entrada em nosso pedido: Reconhecimento de Paternidade Socioafetiva. Apesar de estarmos mais do que preparados para contar nossa vida para uma pessoa estranha que iria nos avaliar, o cenário foi composto por vozes trêmulas e olhos marejados. Felizmente, após nossa oitiva, a oficial não tinha dúvidas sobre nossa relação. O processo seguiu para o juiz da Vara de Registro Público, foi ao MP e voltou para sentença.

Felizmente, posso falar com propriedade causa o que é ter uma relação paterna-filial reconhecida pelo Estado, pois foi exatamente essa a sensação que eu e meu pai experimentamos quando foi a nossa vez de pleitear o nosso reconhecimento.

Sabrina

Olá!! Eu me chamo Sabrina Halbout Carrão de Vasconcelos, fui adotada com um (1) ano pelos meus pais, Ernani e Eliane, junto ao meu irmão biológico Leonardo, e hoje estou com quinze (15) anos.

Fui adotada em 2007 no abrigo Lar Fabiano de Cristo. O motivo do meu acolhimento foi porquê minha genitora estava abrigada nessa instituição.

A adoção mudou minha vida completamente, porquê tenho uma família. Hoje eu me vejo como a pessoa mais sortuda do mundo. Não mudaria nada que se passou até hoje.

Hoje eu estou estudando muito, ajudando a cuidar da casa junto aos meus pais e procurando ter um futuro dos sonhos.
No momento desejo fazer Relações Internacionais e Coreano.

Leia também:

Dia 11 estreia a série “Adoções”

ADOÇÕES I – Família Harrad Reis

ADOÇÕES II – Do direito à convivência familiar e comunitária

ADOÇÕES III – Obrigações de cuidado

ADOÇÕES IV – Condições para adoção

ADOÇÕES V – O processo de adoção

ADOÇÕES VI – Cadastro Nacional de Adoção

ADOÇÕES VII – Adoção no Brasil

SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

SILVANA DO MONTE MOREIRA – Advogada, militante da Adoção Legal, mãe sem adjetivos. Presidente da Comissão de Direito da Criança e do Adolescente da OAB/RJ (2016/2018, 2019/2021), coordenadora dos Grupos de Apoio à Adoção Ana Gonzaga I e II, membro fundador da Comissão de Direito Homoafetivo da OAB-RJ, Representante para o estado do Rio de Janeiro da Associação Brasileira Criança Feliz, dentre outras atividades que desempenha. @silvanamonteadv


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