Por Carlos Mariano –
O Carnaval fora de época terminou há pouco mais de 15 dias mas, reverbera ainda as discussões que animaram a festa durante e após a revelação dos vencedores.
Nós, apaixonados pelas nossas queridas agremiações, ficamos na expectativa de qual seria a nova campeã do carnaval carioca após um ano sem essa paixão nacional. Aí, entramos num debate sobre o resultado da apuração. Fazendo esse rito sambístico, me deparei com a justificativa da nota 9,8 dada ao samba-enredo da Portela pela jurada Alice Serrano, no recente carnaval que acabou.
Na sua justificativa, Alice argumenta que retirou dois décimos da nota dos portelenses por seu samba (cujo o tema era a história e a simbologia dos baobás, árvores gigantes e milenares que representam a ancestralidade, religiosidade, identidade e a memória do povo africano) apresentar palavras e termos de etnias e nações africanas, que prejudicariam a compreensão de alguns versos.
Ela cita que o refrão do meio que contém as palavras “ayeraye, “mão de ofá”, “aluá”, “coité” “dandá” ficaram sem coesão, prejudicando o canto da escola.
Sério! Uma jurada que tira pontos de um samba-enredo que fala de ancestralidade afro-brasileira pela letra conter muitas palavras da cultura africana, na melhor das hipóteses deveria fazer um curso de reciclagem sobre a história da origem das escolas de samba. Isso considerando que seria falta de conhecimento e não preconceito.
Em seu clássico “Samba, o dono do corpo”, o sociólogo Muniz Sodré afirma que o significado do samba está localizado na cultura negra. Ele nos remete às vinculações religiosas do samba, invocando a figura de Exu (tema do enredo da vencedora do Carnaval 2022, a Grande Rio), orixá mensageiro, na sua condição de Bará, no iorubá oba, rei, juntando-se à ara, ao corpo. Seguindo a afirmação do mestre Sodré, podemos também encontrar no fenômeno das escolas de samba, desde sua origem em 1928, com a criação da primeira escola de samba do Brasil – a “Deixa Falar”, que os fundamentos geradores da sua formação encontram-se fundamentado numa concepção negro-africana do tempo, aplicada ao fenômeno da síncopa – elemento rítmico característico do samba de sambar criado pelos negros afrodescendentes do Estácio, no início do século XX.
Michel Foucault dizia que nenhum poder se exerce sem que haja resistência.
A escola de samba ao longo do seu trajeto de socialização e a afirmação como identidade nacional da nossa cultura foi sempre um movimento de continuidade e afirmação de valores culturais negros. Quem vai trabalhar com escola de samba, ou vai analisar e julgar seus sambas enredos, tem que ter em mente essa realidade histórica.
Alice Serrano é cantora profissional. Pesquisando sua carreira me deparei com o seu trabalho musical de 2004, intitulado “Movimentos”. O CD é composto de sambas da chamada bossa nova. Tom Jobim, Johnny Alf, Vinícius de Moraes e Nelson Motta são alguns dos compositores que fazem parte do trabalho musical feito pela jurada, que não gostou das palavras afro do samba portelense.
O saudoso pesquisador musical José Ramos Tinhorão, em seu “Música Popular – um tema em debate”, argumenta que a bossa nova é um rompimento do samba com suas origens populares. Tinhorão explica que esse divórcio atinge seu auge em 1958, quando um grupo de jovens da grã-finagem da Zona Sul do Rio de Janeiro, modifica o samba no que lhe restava de original, ou seja, a intuição rítmica trazida pelos negros afrodescendentes. Em seu lugar, eles colocam um novo tipo de samba, à base de procedimentos da música clássica e do jazz.
Ocorre também uma mudança temática para o campo intelectual mais identificado com a poesia erudita, como o do poetinha Vinicius de Moraes.
A reflexão de Tinhorão feita em 1966 nos presta para tentar entender a nota dada pela jurada Alice Serrano ao lindíssimo samba da Portela. Tudo indica que a formação musical da cantora na sua carreira artística, baseado e muito no samba branqueado e nascido em berço de ouro da bossa nova, ajudou-a construir sua estapafúrdia justificativa de retirada de pontos do samba portelense, por ter palavras africanas, quando o samba descrevia uma história da cultura da ancestralidade negra.
Já passou da hora da Liesa repensar a escolha e formação desses jurados. Eles precisam analisar as escolas de samba e seus enredos a partir da realidade histórica delas, e não apenas através do seu olhar etnocêntrico. Assim, podemos evitar essas notas doidas dadas todo ano nos desfiles da Sapucaí.
CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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