Por Luiz Carlos Prestes Filho –

Em entrevista exclusiva para o jornal Tribuna da Imprensa Livre a compositora Laiana Oliveira afirmou: “Não tenho uma opinião sobre a crítica de música contemporânea no Brasil, desconheço se há um movimento, e também não acompanho a crítica internacional. É claro, tenho acompanhado há semanas todas as entrevistas da Tribuna da Imprensa Livre, e acredito que esse trabalho já é referência e diminuirá a distância entre os compositores, estudantes de música e público em geral. A música contemporânea sobrevive no Brasil graças às universidades e ao esforço dos intérpretes e coletivos que se unem muitas vezes sem cachê ou editais, apenas para que o fazer musical atual se mantenha vivo.” Para a compositora:

“Muito se fala em ouvir mais compositoras, sempre como uma coisa para o futuro ou um sonho distante, mas a solução para isso é muito simples. Pergunte aos estudantes de música quantas obras de compositoras eles tem no repertório, pergunte aos professores quantas compositoras eles conhecem. Embora a internet tenha tornado fácil o acesso às obras de tantas compositoras para diversos conjuntos vocais e instrumentais, eu vejo muito raramente esse repertório nas grandes temporadas dos teatros. Esse assunto é sempre tratado como uma urgência não tão urgente assim, quase como um favor, e pouco se faz a respeito.”

Laiana Oliveira é Bacharel em composição musical pela UFG, Mestra e Doutora em composição musical pela Unicamp, orientada pela profa. Dra. Denise Garcia. No Theatro Municipal de São Paulo foi solista nas montagens das óperas A Flauta Mágica de W. A. Mozart (terceiro gênio), O Cavaleiro da Rosa de Richard Strauss (segundo orfão), e da Mass, de Leonard Bernstein. Em seu repertório constam obras de compositores como Schoenberg, Berio, Stravinsky, Cage, Lukas Foss, Kate Soper, e estreias de obras de compositores brasileiros. Desde 2017 se dedica a criação e ensino do método Solfejo sem medo de leitura musical para cantores. Atualmente desenvolve pesquisa de pós- doutorado na Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), sob supervisão do Prof. Dr. Wladimir Mattos, e se dedica ao estudo e performance de Música Vocal Não Acompanhada. (Fonte: Currículo Lattes)

Luiz Carlos Prestes Filho: Música de Concerto, Música Erudita ou Música Clássica?

Laiana Lopes de Oliveira: Já quero começar agradecendo ao convite para participar desse ciclo de entrevistas. Por aqui já passaram compositoras e compositores pelos quais tenho profunda admiração e é uma responsabilidade imensa conversar com você sobre todos esses assuntos também abordados por elas e eles. Bom, sobre essa pergunta, eu acredito que nunca haverá consenso. O termo Música Erudita me incomoda profundamente por pressupor que há uma música “melhor” que outra; Música Clássica traria muitas confusões pois o termo remete ao período Clássico. Música de Concerto, para mim, exclui a música vocal e teatral – eu não imagino Ópera incluída ao termo música de concerto, por exemplo.

Eu tenho feito um esforço enorme para aproximar meus alunos da música ocidental, conduzindo discussões que os façam repensar todos esses termos problemáticos que simplesmente aceitamos em nossa formação (como acidentes, música erudita, entre outros) e tenho usado o termo Música Histórica Ocidental.

Recital Ateliê Contemporâneo em 2016. Na foto estão Lucas Albuquerque (regência), Arthur Nesrala (piano) Rodrigo Prado (cello) e Leonardo Serrão (violino). (Crédito: Thales del Comune)

Prestes Filho: Como surgiu o seu interesse pela música para voz não acompanhada? Entendo que é difícil resumir um tema para o qual você dedicou uma tese de doutorado. Mas, para os leitores que acompanham esta série de entrevistas, será uma interessante introdução a tema raramente debatido pela grande mídia.

Laiana Oliveira: Meu interesse surgiu na primeira vez em que ouvi Sequenza III do compositor Luciano Berio, na voz da cantora Cathy Berberian, durante a aula da professora Ana Lúcia Fontenele, no meu primeiro dia de aula na EMAC-UFG, em 2006. Eu fiquei embasbacada. Como é possível que uma voz faça todos esses sons? De onde vem tudo isso? O que ela quer comunicar? Eu entrei no curso de composição sabendo bastante do que havia acontecido até o fim do século XIX, mas estava totalmente alheia sobre o século XX – e continuei assim uma boa parte do curso, pois o acesso à informação ainda era restrito pela própria ementa do curso. De maneira alguma estou criticando a educação que recebi na UFG, mas acredito que seja necessário dizer que estruturas de cursos no Brasil divergiam bastante nessa época, de acordo com as preferências estéticas de cada escola. É importante dizer que antes de estudar composição eu desejava ingressar no curso de canto lírico, mas por ainda não estar pronta vocalmente, e por já testar algumas ideias composicionais, meus professores da época – Angela Barra e Carlos Costa, me orientaram a fazer o curso de composição musical, o que foi excelente para minha formação e decisivo para as atividades que exerço atualmente. Eu sempre tive fascínio pela voz e pelo canto, e durante a graduação e o mestrado me “infiltrava” nas atividades dos cantores participando de coros, óperas, recitais, e conheci bastante repertório tradicional, embora aquela primeira experiência de Sequenza III ainda continuasse viva e instigante. Em 2013 conheci a obra do compositor Georges Aperghis, e preparei para minha prova de doutorado um movimento para voz não acompanhada da obra Sextour. A experiência foi estranhíssima, e ali me dei conta: voz não acompanhada é uma pessoa no palco controlando todos os aspectos da música. Uma atitude mínima do performer ganha proporções gigantes, e nesse sentido, a música e o cênico são inseparáveis.

Na verdade, toda performance musical é um ato cênico. Será? Deixo essa provocação para quem nos lê.

Com o Coro e Orquestra Sinfônica Jovem de Goiás. Regência de Jânio Matias. 2015. (Crédito: Lorena Moraes)

Prestes Filho: Como seus professores Ângela Barra, Paulo Mandarino e Miguel Geraldi influenciaram seus caminhos? Qual foi a contribuição de cada um deles?

Laiana Oliveira: Esses três professores são profissionais com ampla experiência em educação e em performance, tendo desenvolvido uma importante carreira no Brasil e no exterior. Eu tive a oportunidade de ser aluna de Angela Barra durante a adolescência. Ela me ensinou a base da técnica, a ter cautela na escolha do repertório e a não ser imediatista, tendo em vista que o processo de formação do cantor é um dos mais longos. Com Paulo Mandarino, o foco era na reconstrução da técnica do canto lírico e repertório tradicional, já que tinha ficado alguns anos sem cantar e nessa época eu tinha muito interesse no repertório operístico. Miguel Geraldi é um dos discípulos da grande cantora brasileira Neyde Thomas,e em nossos estudos além de toda essa herança técnica e estética, trabalhamos agilidade e resistência – o que me ajuda a ter o tônus necessário para cantar peças experimentais. Recentemente tive aulas com Tony Arnold, que me orientou na preparação de Sequenza III (após 15 anos da primeira escuta tomei coragem para cantar). Nesse meu primeiro contato com uma cantora referência no repertório contemporâneo percebi o quanto fez falta não ter com quem dividir os detalhes e discutir escolhas técnicas e interpretativas. Por isso, um dos desdobramentos da minha pesquisa de pós-doutorado é desenvolver ações para unir pessoas que desejam cantar música contemporânea e compartilhar suas experiências. Mas essa é outra história. Embora os três professores tenham abordagens completamente distintas, existe um ponto em comum, inclusive com Tony: seja repertório lírico ou experimental, o estudo da técnica vocal é indispensável para que eu possa cantar sem me machucar, preservar meu instrumento e fazer escolhas saudáveis para que o resultado sonoro seja satisfatório pra mim e para a obra.

A voz é um instrumento temperamental – fatores externos e internos podem modificar uma performance, por isso meus estudos de canto atualmente visam resistência física, técnica e mental, e compreensão sobre meu corpo como instrumento.

Defesa de dissertação de mestrado. 2014. Silvio Ferraz, Denise Garcia, Laiana Oliveira, Luiz Eduardo Castelões

Prestes Filho: Você diz que passou por muitas etapas para estabelecer sua forma de compor, que é basicamente vocal. Teve origem familiar este seu interesse pelo canto? Como a música aconteceu para você? Fale de suas origens.

Laiana Oliveira: Minha família não tem tradição musical, e eu comecei a cantar nos trabalhos da Igreja. Aos 13 anos resolvi estudar teclado na escola de música da profa. Catarina Atiê em Anápolis-GO. Ela viu potencial em mim e me conduziu aos estudos de teoria, me apresentou seu acervo de partituras, cds, livros de história da música, e para a tristeza da minha mãe, eu me apaixonei perdidamente pela música histórica ocidental e perdi o interesse pela música da igreja. Eu sempre fui uma pessoa corajosa, mas ingênua, e tinha essa urgência em produzir para aprender. Porém minhas referências estéticas eram limitadas e na tentativa de ampliá-las, me inscrevia em todos os cursos e festivais possíveis, mesmo não estando preparada para tal. Neste percurso tive experiências muito ruins com professores que me julgavam incapaz por não saber (e qual é a função do professor?), enfim, já fui ridicularizada por causa de uma das minhas peças na frente da turma. Essas experiências me tiraram a espontaneidade de criar, e fizeram com que eu me tornasse muito dura e crítica com o que eu produzia até o ponto de eu não ter a mínima vontade de compor. Mas nem tudo é tristeza. Eu tive a sorte de conhecer compositores maravilhosos que fizeram toda a diferença na minha vida, como o Silvio Ferraz que me apresentou a Denise Garcia (minha orientadora no mestrado e doutorado), Roberto Victorio, Edino Krieger, e meu grande mestre Estércio Marquez Cunha que foi a primeira pessoa que me ensinou a questionar – ainda estou aprendendo. Meu catálogo de obras é pequeno, pois não fiz questão de guardar nenhuma das peças escritas antes de 2014, embora algumas estejam de cor na minha mente. Eu tinha receio de compor coisas ou muito melódicas ou muito teatrais, mas nos últimos anos assumi minhas aspirações cênicas e vocais, e componho basicamente pra voz não acompanhada. Tive a alegria de recentemente ter uma peça estreada pelo Trio Girassol, e finalmente me sinto confortável para compor para outras pessoas. E é claro, eu acredito que no ato de cantar uma obra a co-criação é implícita em qualquer grau de abertura.

Isso me ajudou a descobrir meu estilo e criar um repertório de ideias que me agradam.

Laiana Oliveira e os solistas dos meus Noturnos para orquestra de câmara e solistas vocais, Orquestra sinfônica da Unicamp. Na foto Daniel Duarte, Victória Real. eu Susana Bocato e Artur Canguçu. 2014

Prestes Filho: Porque a decisão de estudar composição na Universidade Federal de Goiás? Nesta época você tinha estudado as obras para canto do compositor Estércio Cunha?

Laiana Oliveira: Optar pela UFG foi uma decisão em família, e eu não conhecia os professores de composição da instituição. Quando ingressei na universidade o prof. Estércio já era aposentado, mas, para minha sorte, voltou a dar aulas quando eu estava no segundo ano, e continuei tendo contato com ele até 2012, quando me mudei para Campinas. Meu contato com o prof. Estércio foi transformador e define muito do ser humano que eu quero ser com relação ao ensino da música, e a composição. Ele me ensinou a questionar o mundo, a tentar equilibrar minha pressa interior, e a escrever para a voz. Durante uma de suas aulas, ele trouxe um de seus poemas para utilizarmos como material composicional. Esse exercício se transformou na peça Vago, para voz, piano e clarinete. Estércio tem uma obra interessantíssima, com bastante música de câmara, música para orquestra, música-teatro, e as óperas A décima quarta estação e Requiem for Prometheus. Existem alguns registros dessas peças no Youtube.

Fico muito feliz por ter tido a oportunidade de tê-lo como professor, tenho muitas saudades dele e das aulas.

Roberto Victório, eu e Almeida Prado. Festival de Inverno de Campos do Jordão. 2010

Prestes Filho: Qual sua opinião sobre a crítica da música contemporânea no Brasil? Quem são aqueles críticos que realizam um trabalho sobre música contemporânea, no Brasil e no exterior, que merece reconhecimento?

Laiana Oliveira: Eu realmente não tenho uma opinião sobre a crítica de música contemporânea no Brasil, desconheço se há um movimento, e também não acompanho a crítica internacional. É claro, tenho acompanhado há semanas todas as entrevistas da “Tribuna da Imprensa Livre”, e acredito que esse trabalho já é referência e diminuirá a distância entre os compositores, estudantes de música e público em geral. A música contemporânea sobrevive no Brasil graças às universidades e ao esforço dos intérpretes e coletivos que se unem muitas vezes sem cachê ou editais, apenas para que o fazer musical atual se mantenha vivo. Se as políticas públicas estão cada dia mais escassas para a música tradicional, o que podemos dizer da música contemporânea? Eu presenciei como estudante muitas iniciativas que davam orgulho como, Camerata Aberta, a série de recitais de música contemporânea na Sala do Conservatório sob curadoria de Leonardo Martinelli, os recitais da CPFL Cultura, o circuito de música contemporânea que acontecia no Festival de Campos do Jordão, onde pude assistir e ter masterclass com o quarteto Arditti…

Enfim, tudo isso faz parte de um passado não tão distante, mas que infelizmente não tem perspectiva de retorno.

Cantando Pousseur com Samuel Mello, Ricardo Kuballa, e Rodrigo Prado. Unesp 2019

Prestes Filho: Cite nomes de compositores, de voz não acompanhada, que foram fundamentais para a sua formação. Cite nomes de compositores que você acompanha no Brasil e no mundo. Também, algumas obras de voz não acompanhada que tem importância estruturante para sua formação.

Laiana Oliveira: Os primeiros compositores de música para voz não acompanhada que tive contato foram Kurt Schwitters e sua Ursonate, Cathy Berberian e sua Stripsody, a imensa obra de John Cage, o trabalho excelente e inventivo de Georges Aperghis, e é claro Luciano Berio. Observando minhas respostas às suas perguntas, percebo que naquele primeiro dia de aula, naquela primeira escuta estava o cerne de tudo o que eu desenvolveria até então, tendo como alguns dos resultados a minha dissertação em que observei o que chamei de “uso instrumental da voz” nas obras O King e Agnus, e minha tese onde fiz análises composicionais e interpretativas de 4 obras para voz não acompanhada, incluindo Sequenza III. Em 2019 iniciei um projeto pessoal chamado “Música Atual para Voz não Acompanhada”, que em maio deste ano se tornou uma pesquisa de pós-doutorado sob supervisão do prof. dr. Wladimir Mattos, na UNESP. Dentro desse projeto fiz uma chamada de obras (em fluxo contínuo), e recebi peças inéditas ou pouco realizadas de compositores do Brasil, Portugal, Chile, Equador e Colômbia. Infelizmente recebi poucas obras de compositoras, mas como a chamada ainda está aberta, tenho esperanças. A ideia principal do trabalho é selecionar 30 obras de compositores brasileiros divididas em três recitais. Parte dessas peças já está sendo registrada em vídeo-recitais, e serão lançadas em breve. Já fazem parte do projeto os compositores Jocy de Oliveira, Jorge Antunes, Edson Zampronha, Bruno Angelo, Bruno Ishisaki, Helder de Oliveira, Gustavo Arima, Carlos dos Santos, Marco Antônio Machado, e Fernando Riederer. Outros compositores que terão obras no projeto são Willy Corrêa Oliveira, Almeida Prado, Ilza Nogueira, Luis Carlos Csekö, Gilberto Mendes, Achille Picchi, Tim Rescala, e Eduardo Guimarães Álvares, graças ao legado da cantora Martha Herr, que em 2006 lançou o recital Vozes em conversa, em que estreou obras de todos esses compositores. No Brasil a cena vocal experimental conta com artistas como vocais/compositoras com trabalhos de muita inventividade como Ines Terra que é artista vocal e criadora da série de performance vocal Língua Fora, Flora Holderbaum, Paola Ribeiro.

No cenário internacional compositores que têm uma escrita interessantíssima para voz são Kate Soper, Daniel D’adamo, David Brid, e Jason Eckardt.

Laiana Oliveira. (Reprodução: Instagran)

Prestes Filho: A Música Contemporânea abraça o seu ambiente de trabalho. Quais movimentos de Música Contemporânea você acompanha hoje? Quais poderia destacar? Poderia citar os artistas brasileiros e estrangeiros da atualidade? Como foi sua participação no Grupo Contemporâneo e no Ateliê Contemporâneo da Escola de Música Municipal de São Paulo?

Laiana Oliveira: Embora meu objeto de pesquisa seja a música vocal não acompanhada, estar inserida em projetos de música de câmara é parte essencial da minha atividade como compositora e performer. Desde maio, o Festival Música Estranha, que está em sua oitava edição, promove uma série de ações sobre música nova, e dentro dessa programação participei de um show-case com o Coletivo Capim Novo que é um grupo extraordinário nascido na EMESP e que trabalha atualmente criações conjuntas envolvendo todos os participantes, isto é, sem hierarquia compositor-intérprete. Outro grupo novíssimo com o qual colaboro é o Ato em Camerata, formado por compositores e intérpretes de São Paulo. Em Uberlândia, existe o Cerrado Ensamble, dirigido por Gabriel Rimoldi. Um grupo excelente de intérpretes que se dedicam a estrear e difundir obras de compositores contemporâneos. E é claro, a edição de 2021 do Festival Amazonas de Ópera foi um dos grandes suportes à música contemporânea vocal brasileira – a meu ver uma evento sem precedentes pelas grandes casas de música do Brasil. Na verdade esse festival vem incluindo óperas contemporâneas há algumas edições em sua programação, porém a edição de 2021 teve 3 óperas inéditas (tendo em consideração o vídeo como palco) e vários recitais com obras de compositores brasileiros transmitidos ao vivo via Youtube, ampliando consideravelmente o acesso do público a esse repertório. Sobre formação, tanto o Ateliê Contemporâneo EMM-SP quanto o Grupo Contemporâneo da EMESP foram de fundamental importância para meu crescimento como intérprete, pois tive palco para poder errar e acertar, e estive sempre na companhia de intérpretes e compositores tão ávidos a aprender quanto eu. Eu preciso agradecer Sarah Hornsby e Tiago Gati por toda a confiança e por gerirem esses projetos mesmo com tantas dificuldades.

Dentro desses grupos eu pude cantar peças importantíssimas como O King e Folk Songs de Berio, Pribaoutki e A história do Soldado de Stravinsky, Pierrot Lunaire de Schoenberg, e peças de compositores como Gustavo Bonin, Guilherme Ribeiro, Leon Steidle, entre outros.

Defesa de tese de doutorado. 2018. Jonatas Manzolli, Marco Antônio Machado, Denise Garcia, Laiana Oliveira, Angelo Fernandes, Valéria Bonafé

Prestes Filho: A interseção audiovisual/teatro/música hoje é uma realidade. Em especial, por conta da atual revolução científica e tecnológica que está transformando todas as áreas da cultura. Neste contexto, suas participações nos espetáculos “Rua Carne entre as articulações”, “Tambor de Couro Vivo” e “Deu uma Margem a Outra” demonstram seu interesse pelo diálogo entre as artes. O que representaram para você estes projetos?

Laiana Oliveira: Os aspectos cênicos são inseparáveis dos musicais na prática do canto. E concertos pensados para o vídeo já são uma realidade, sobretudo durante a pandemia. Considerar novas possibilidades de registro e difusão de música nos fez pensar em outros espaços que não o palco para que a música pudesse se realizar. No fim do mês passado, por exemplo, eu gravei um recital com um estúdio móvel (produtora Urbana) dentro de uma casa. Para o FAO, a parede bonita de um estúdio bastou para que se tornasse palco. O olhar do performer, que antes era direcionado à escura imensidão de um teatro, se volta agora a uma ou duas câmeras. Penso que era uma questão de tempo para que essas possibilidades se tornassem intrínsecas ao pensamento composicional e interpretativo, e apesar dessa adaptação ser exaustante, é necessária. Porém, antes da era pandêmica, eu participei de alguns espetáculos cênicos/musicais inéditos, e apesar de o conceito não ser novo, havia muito a ser explorado. Esses trabalhos geralmente não levavam a assinatura de apenas um compositor, e quase sempre faziam uso de música eletrônica mista e em tempo real. Como performer posso dizer que a cada récita eu flertava com o acaso, pois um dispositivo poderia parar de funcionar, um dos computadores poderia pifar – são questões diferentes da música acústica e igualmente desafiadoras. “Rua de Carne entre as articulações” foi escrita pelos compositores Bruno Ishisaki, Marco Antonio Machado e o poeta Marcus Groza para cantores, atores e banda de rock a partir do conceito de anti-ópera desenvolvido por Ligeti. “Tambor de couro vivo” foi uma iniciativa da mesma companhia – uma peça de teatro em que atuei como preparadora vocal do elenco e gravei as partes de voz não acompanhada para a trilha sonora. “De uma margem a outra” foi concebido como um espetáculo multimodal com direção de Daniela Gatti e composições de Jônatas Manzolli, Danilo Rossetti e Gabriel Rimoldi. Havia um ensemble com percussão, flauta e voz que dialogava com dois bailarinos e vários dispositivos eletrônicos.

Aqui, bailarinos e musicistas tinham a mesma importância no resultado sonoro e visual do espetáculo, e isso nos permitiu várias formas de experimentação e interação dentro da abertura proposta.

Primeiro recital do projeto Música Atual para Voz não Acompanhada. Fevereiro de 2020

Prestes Filho: Através da obra “Virus Verbal” você expressou “suas impressões e cantou sobre sua rotina durante a pandemia da Covid 19”. Você considera importante o compositor falar de temas atuais, desenvolver óperas com temas que estão na ordem dia? Quais seriam os temas que hoje chamam a sua atenção? Como gritos, sussurros, respiração pesada, regionalismos e inflexões podem fazer parte com canto? Quais autores brasileiros desenvolveram e desenvolvem trabalhos com este material vocal?

Laiana Oliveira: Temos vários exemplos de como obras da música histórica ocidental falava dos temas de seu tempo, e enquanto professora, me utilizo dessas obras para mostrar aos meus alunos fatos históricos, características sociais, e mudança de paradigmas de cada época que se refletem através do desenvolvimento da forma/estrutura musical, e também no modo como as outras artes influenciaram a música. E é claro, nós somos o retrato do nosso tempo. Se ainda existir mundo daqui 100 anos, qual vai ser a música que representa a pandemia do século XXI? Como os teóricos vão descrever essa produção? Que discussões essa música suscitará? Felizmente, ou não, estamos fazendo história. Atualmente há uma crescente discussão sobre arte-compostagem nos campos da criação e musicologia. Existe essa tendência mundial de alerta sobre o aquecimento global, e uma das compositoras que está se destacando nesse movimento é a britânica Laura Bowler. Sobre técnicas estendidas e gestos cotidianos em música, posso dizer que isso sempre esteve presente na música cênica tradicional, mesmo não estando formalmente escrito na partitura, e nesse sentido acredito que Sequenza III representa a síntese dessa tradição. Atualmente, essas e outras técnicas como overtone singinig, morphing, sons guturais, fazem parte do domínio do instrumento voz no repertório contemporâneo, esperando do intérprete preparação técnica para tal. Para mim, a escrita e estudo dessas técnicas multiplicam as possibilidades vocais e podem ser feitas de maneira saudável sem perda de “impacto”. Afinal os rockstars fazem exatamente isso. Agora, em se tratando da escrita, não há consenso sobre como representar essas sonoridades na partitura, o que motivou vários compositores a buscar sua própria forma de escrever. Dediquei muito da minha pesquisa a falar sobre isso. Se por um lado essa diversidade de escrita e sua interpretação é totalmente estimulante, por outro, muito da ideia composicional pode se perder ou não estar clara na escrita – por isso, busco conversar com cada compositor antes de estudar as obras. Existe também a reflexão sobre a efemeridade da partitura em si. Alguns compositores utilizam isso conscientemente, como é o caso da peça Bonito de Chorar, de Marco Antonio Machado, que foi dedicada a mim e será estreada no Seminário Internacional de Música Nova em Curitiba, em outubro. O único manuscrito dessa peça está comigo, e a peça existirá enquanto existir a partitura física. De modo geral, compositores experimentais têm explorado essas técnicas e partituras alternativas em suas obras.

Aqui destaco Jorge Antunes, que inclusive é autor de um livro que cataloga técnicas estendidas para voz.

Cerrado Ensemble, 2019. Gabriel Rimoldi e Laiana Oliveira

Prestes Filho: No seu repertório encontramos obras de diferentes compositores como Pierrot Lunaire, Arnold Schoenberg (traduzido por Augusto de Campos), Luciano Berio, Stravisky, John Cage, Lukas Foss e Kate Soper. Como autores com linguagens tão diferentes e originais influenciaram sua forma de compor? Quais foram suas descobertas em cada um deles? Em sua obra “Música para Violino e Piano” você demonstra interesse em realizar experiencias sonoras com instrumentos acústicos, da mesma maneira como em “Suíte para Corações Brasileiros”.

Laiana Oliveira: Todos esses compositores me estimularam a não ter vergonha do que eu queria escrever, e a ter coragem de defender minhas ideias. Mas dentre todos, os mais importantes – além do Berio, foram a Cathy Berberian e o Georges Aperghis. O fato de haver tanto repertório para voz na música contemporânea se deve a atuação de Berberian como co-criadora e colaboradora no processo composicional de tantos compositores. Aperghis para mim representa a total renovação da linguagem musical, desde a forma com que qualquer som pode se transformar em material composicional, como ele utiliza acumulação e desacumulação na construção e desconstrução de grandes estruturas, e sua concepção de corpo na música como instrumento total, como pode-se notar numa das minhas peças preferidas dele, Retrouvailles. “Música para piano e violino” foi uma peça que fiz em 2008. A parte do piano deveria ser fácil para que eu conseguisse tocar, a do violino nem tanto. Essa peça foi inspirada em um dos movimentos de Turangalîla de Messiaen, que conheci por influência do Estércio. “Suite para Corações Brasileiros”, da mesma época, foi escrita para clarinete, e apesar do que o nome possa evocar, essa obra tinha várias citações de vídeos virais e músicas de Reginaldo Rossi e Sidney Magal.

A partitura dessas peças já não existe mais, apenas o registro em vídeo. Efemeridades….

De uma margem a outra, 2018. Rodolpho Simmel, Rafael Peregrino, Karina Almeida, Tutu Morasi, Laiana Oliveira e Gabriel Rimoldi

Prestes Filho: Sua canção “Vox Populi” foi baseada numa entrevista do compositor Caetano Veloso. Como se deu o processo de composição? O som de cada palavra ou a forma de expressar cada palavra que guiou o seu trabalho? Como o texto e a fala colaboram para a construção desta obra? Este trabalho tem relação com o seu texto “A palavra em Música – a fala no processo composicional de música de câmara vocal e instrumental”?

Laiana Oliveira: Eu sempre fui fascinada pelo universo do meme e vídeos virais, e vejo muito potencial de criação nesse material- já utilizei para vários propósitos. “Vox Populi” é de 2016, um ano em que o conservadorismo estava crescendo bastante no Brasil. Eu me inspirei nas abordagens de Aperghis e dividi o vídeo em 3 dimensões – contornos frasais, material textual e fragmentos fonéticos. Daí comecei a organizar a peça catalogando sons consonantais, frases em legatos com vogais a partir das análise de alturas provenientes do contorno frasal de Caetano, e silabas isoladas que possibilitaram o processo de acumulação e desacumulação progressiva do texto resultando em: Cê é burro cara, que loucura, que coisa absurda, isso aí que você disse é tudo burrice, eu não consigo gravar muito bem o que você falou, porque você fala de maneira burra, entendeu? Enfim, esse texto pode fornecer possibilidades infinitas de associação entre sílabas, acrescentadas a modos de emissão e ainda, criação de novos fragmentos textuais. Nesse sentido, meu contato com as aulas de fonética da profa. dra. Eleonora Albano na Unicamp foi de fundamental importância para que eu compreendesse a representação e utilização do Alfabeto Fonético Internacional, que até hoje é um dos meus maiores aliados para gerar material para abordagens vocais.

Sala Cecília Meireles (homenagem à poetisa e pianista amadora) é uma das mais tradicionais salas de concerto do Brasil, possui capacidade para 670 lugares e foi projetada para receber concertos de música de câmara. (Divulgação)

Prestes Filho: Qual sua opinião sobre a presença das mulheres em atividades musicais no Brasil? O número de compositoras na Academia Brasileira de Música (ABM) é muito pequeno. Seria possível uma reflexão sobre este tema?

Laiana Oliveira: Todas as vezes que conheço o trabalho de uma nova compositora fico muito entusiasmada, mas ao mesmo tempo triste por ainda sermos tão poucas. Muito se fala em ouvir mais compositoras, sempre como uma coisa para o futuro ou um sonho distante, mas a solução para isso é muito simples. Pergunte aos estudantes de música quantas obras de compositoras eles tem no repertório, pergunte aos professores quantas compositoras eles conhecem. Embora a internet tenha tornado fácil o acesso à obras de tantas compositoras para diversos conjuntos vocais e instrumentais, eu vejo muito raramente esse repertório nas grandes temporadas dos teatros. Esse assunto é sempre tratado como uma “urgência não tão urgente assim”, quase como um favor, e pouco se faz a respeito. No que diz respeito ao estímulo ao surgimento de novas compositoras, acredito que é essencial contarmos para as meninas que elas podem criar, experimentar, errar. Quando digo que o currículo dos conservatórios e universidades deve ser revisto, é justamente no sentido de ampliar o diálogo e multiplicar oportunidades de expressão através da criação, partindo da premissa de que todo o intérprete é criador.

Com o ensino tradicional que preza pela leitura e reprodução da partitura estamos perdendo potenciais criadoras, silenciadas por pensarem que suas ideias não são tão boas assim.

Membros fundadores da Academia Brasileira de Música, julho de 1945, ano em que a ABM foi criada. De pé, da esquerda para a direita: Florêncio de Almeida Lima, Radamés Gnattali, Andrade Muricy, Eurico Nogueira França, Fructuoso Vianna, não-identificado, Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, não-identificado, Lorenzo Fernandez, e não-identificado. Sentados, da esquerda para a direita: João Octaviano Gonçalves, ​João Batista Julião, Heitor Villa-Lobos, João Itiberê da Cunha, e Octavio Bevilacqua. Coleção de Aloysio de Alencar Pinto, doada ao IPB por Georges Mirault (Reprodução)

Prestes Filho: A Academia Brasileira de Música (ABM) desempenha papel importante na difusão da música brasileira. Você entende que o compositor deve participar de associações e sindicatos para encaminhar reivindicações e participar ativamente das lutas populares?

Laiana Oliveira: Minha resposta pode parecer coisa de gente alienada, mas se eu fizer uma retrospectiva da minha formação e atuação profissional, eu não sei dizer se a ABM esteve presente na minha vida. Lembro de ouvir pouco sobre isso quando estava na universidade, e pensava na ABM como um mundo paralelo onde os grandes compositores se reuniam, mas nunca soube o que se discutia por lá. Motivada por sua pergunta, conversei sobre isso com meu ciclo de amigos intérpretes e compositores, e eles também não entendem muito bem do que se trata. Seria interessante da parte da ABM se aproximar dos músicos, ainda mais dos que estão se profissionalizando. Entrei no site deles e a impressão que dá é de que não parece haver muita disposição ao diálogo, por vários fatores já discutidos nas diversas entrevistas que li por aqui e nas perguntas que você me fez. Você disse que a ABM desempenha papel importante na difusão da música brasileira, mas não ficou claro sobre como se dá o acesso ao acervo deles e nem de que música brasileira estamos falando. Enfim, meu propósito aqui não é “causar”, pois entendo que é difícil para qualquer organização cultural se estabelecer por tanto tempo no Brasil. Por essas e outras, seria maravilhoso saber o que eles propõem. Sobre associações de música, acredito que podem ser importantes para que a gente saia da bolha e se reconheça como classe.

Nesse sentido, o surgimento do Fórum Brasileiro de ópera, dança e música de concerto e seus subgrupos foi bastante positivo e já mostra resultados importantes, como o grupo lírica solidária que foi formado a partir do Grupo de Cantores Líricos Solistas Profissionais ajudou a muitos cantores em situação de vulnerabilidade econômica durante a pandemia.

Laiana Oliveira (Reprodução: Instagran)

Prestes Filho: O espaço para a Música Contemporânea no Brasil está reduzido. São poucos patrocínios que a iniciativa privada disponibiliza e as políticas públicas estão cada vez mais limitadas. Quais perspectivas para os próximos anos?

Laiana Oliveira: Eu não tenho perspectivas, gostaria de tê-las, mas estou cada dia mais decepcionada pelos rumos que o Brasil está tomando. Cultura e Educação estão sendo sucateadas, reprimidas, e desencorajadas. Essa escassez de investimentos está fazendo a arte no Brasil ser o que era há alguns anos – coisa de elite, pois as pessoas estão ocupadas demais para se dedicar à arte tentando garantir o básico para a sobrevivência, que muitas vezes falta. Quantos alunos deixaram os estudos por não ter internet em casa? Eu tive alunos que assistiam a aula enquanto dirigiam a moto fazendo entregas. Nesse sentido, eu temo muito por tantas pessoas que sonham se profissionalizar na música mas não terão oportunidade ou disponibilidade para se desenvolver como deveriam. Fazer arte no Brasil é coisa de gente teimosa, e a única alternativa é se juntar a outros teimosos e continuar trabalhando, pois pra mim não há outro caminho se não a arte como modo de vida e expressão.

Não está nos meus planos desistir.

Récita de O Cavaleiro da Rosa, Theatro Municipal de São Paulo, 2018. (Crédito: Stig)

Prestes Filho: Como professora de solfejo, você identifica o surgimento de compositoras e compositores para música não acompanhada? Entre estes, existem seus discípulos?

Laiana Oliveira: O solfejo esteve presente na minha vida desde minha adolescência, e eu realmente acredito que isso se deu dessa maneira por eu não ter passado pelo ensino formal de música (conservatório). O prof. Carlos Costa, que conduzia meus estudos, me ensinou que ler uma partitura não é apenas calcular alturas, mas dialogar com todos os parâmetros musicais. Quando entrei na universidade observei que muitos amigos cantores e instrumentistas tinham verdadeiro pavor do solfejo – seja por experiências ruins com professores, ou falta de metodologia. Assim, em 2017 eu tirei o método “Solfejo sem Medo” do papel. E a boa notícia é que ele funciona, pois entre 2020 e 2021 mais de 300 alunos de todo o Brasil e exterior frequentaram os cursos oferecidos no meu perfil. Meus alunos estão experimentando um contato mais amigável com a partitura, e por consequência, estão alcançando seus objetivos, sendo aprovados em universidades e concursos. Eu acredito no ensino humanizado de música, e que o sistema de ensino precisa se atualizar e desencorajar atitudes hostis por parte de alguns educadores. Nesse sentido, minha principal meta é que nenhum aluno se lembre de mim como a pessoa que disse que eles não conseguiriam. Apesar de a maioria dos meus alunos se dedicarem à performance, faz parte do método estimular todos a criarem e executarem obras de seus colegas. É um trabalho de formiguinha que à primeira vista não parece ter impacto algum, mas ajudar ao menos uma pessoa a pensar sobre sua função de artista na comunidade, já é um ganho imenso. Dentre esses trabalhos ainda não surgiram composições para voz não acompanhada, mas estão surgindo intérpretes dispostos a experimentar o repertório – e não são poucos.

Imagine se daqui alguns anos grande parte dos cantores terem uma ou mais peças de voz não acompanhada no repertório? Isso seria transformador tanto na relação do cantor com a música quanto com seu próprio instrumento.

LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Colaborador do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).


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