Por Kakay

“A Esperança não murcha, ela não cansa, Também como ela não sucumbe a Crença, Vão-se sonhos nas asas da Descrença, Voltam sonhos nas asas da Esperança.”
– Augusto dos Anjos.

O costume com o caos é tanto que já estamos conseguindo fazer, claramente, uma divisão entre o isolamento pré-covid e o isolamento com o vírus, infectado. Aquele longo e indefinido confinamento do início da pandemia continha um misto de perplexidade, de resistência e de indignação com o negacionismo. Havia muito medo e dor ao acompanhar as inacreditáveis mais de 3 mil mortes diárias. Era um horror.

Um clima de interminável final de campeonato nos fazia companhia diuturnamente. Tudo era ligado o tempo inteiro: televisão, internet e grupos de WhatsApp. Todos acompanhando como se estivéssemos numa infindável disputa de pênaltis. Ninguém sabia qual rumo a pandemia iria tomar e o mundo não tinha respostas para tantas indagações e perplexidades.

Depois de mais de 620 mil mortes, continuamos a não ter nenhuma certeza, mas, por sobrevivência, cada um foi se adaptando ao ar rarefeito. Angústias interiores foram sedimentando, os medos foram alojados em algum canto do peito e até a indignação com o negacionista principal expandiu, mas abriu muito o foco. O crápula acrescentou dezenas de outros motivos para ser desprezado e odiado.

À época, estar infectado, ou o susto de vir a ser, era uma sentença forte de condenação pesada. Podia não ser fatal, mas ela, a indesejada das gentes, ficava sondando com suas indefectíveis sequelas e soluços. A vida acostumou-se a ficar em suspense. Ninguém tinha um entendimento razoável do que era realmente vivido. A realidade não era digerida com toda plenitude, pois era preciso misturar as cores e deixar que uma porção de fuga diária nos embrenhasse.

Não sei bem como era, mas era assim. A sobrevivência se impunha. O velho Manoel de Barros nos ajudava a escapulir: “Quem anda nos trilhos é trem de ferro, sou água que corre entre as pedras: liberdade caça jeito.”

Neste réveillon, vivenciei uma experiência única ao chegar numa pequena confraternização de virada de ano. Ver os fogos em Copacabana do alto de um apartamento e exorcizar os males do crápula. Receber a energia boa de milhares de brasileiros que anseiam voltar a ser felizes e que se reuniam lá embaixo na praia. Beijar os poucos amigos presentes e, enfim, brindar a vida e nos permitir sonhar com um país mais justo e igual. Esse era o único plano.
Num ato terno de civilidade e amor ao próximo, num país abandonado à própria sorte, no qual o negacionismo é a tônica do governo e o desprezo pela testagem é a regra, fui surpreendido com a obrigatoriedade de fazer o exame já dentro do apartamento, quase na hora da virada. À espera dos fogos, a própria anfitriã, a genial Adriana Varejão, fazia o teste em cada um dos poucos convidados. Sem estar sentindo absolutamente nenhum sintoma, submeti-me ao teste, por um dever civilizatório, e, para minha surpresa, testei positivo.

Quando falei sobre a diferença entre o início dessa praga pandêmica e agora, foi em razão da minha 1ª sensação ao me descobrir infectado: foi um alívio ter feito o teste e descobrir o vírus. Embora estivesse, e estou, completamente assintomático, eu teria, ali mesmo na festa, começado a infectar logo as pessoas que mais gosto e com as quais dividiria meus chamegos.

O teste permitiu que eu optasse por ficar isolado para me cuidar e, principalmente, para cuidar dos outros. Dos que eu amo e dos que eu nem conheço. Esse foi meu único pensamento. E passei a entender o porquê de o governo desse genocida não ter priorizado a testagem: ele não se preocupa com o outro! Não tem nenhuma empatia, nem compaixão e nem solidariedade. Não tem por que querer testar.

Remeto-me ao haikai Egoísmo, de João Guimarães Rosa:

“Se fosse só eu a chorar de amor, sorriria…”

Nestes dias em que o vírus habita meu corpo, ainda que a contragosto, uma doce solidão tem sido minha companheira, mas uma onda de paz acalenta-me por saber que me precavi ao máximo. E ainda conto com o auxílio luxuoso do mar ao fundo. À noite, escuto as ondas e vejo as águas vindo em movimentos constantes como a dizer-me que nossa resistência tem que ser assim: silenciosa e sem fim. E me invade uma estranha certeza de que vamos voltar a ter nosso país de volta, sem medo de ser feliz.

A tranquilidade que senti desde o 1º momento que soube que estava infectado, com a certeza de que não contaminaria ninguém, é o contrário da angústia dos primeiros dias de pandemia.

Vamos avançar na resistência da conscientização e vencer a barbárie. Nos pequenos gestos de afeto e no fortalecimento da ideia de solidariedade e de cuidado numa luta permanente para ter nosso país de volta. Nunca a solidão foi tão doce companhia.

Amparo-me em Hermann Hesse, no poema Canção de Amor:

“Eu queria ser uma flor,
E que tu viesses em silêncio,
Me tomasse na mão, Como um objeto teu.
Também queria ser vinho tinto
Correndo doce na tua boca,
Entrar por inteiro dentro de ti,
E nos tornar sadios a ambos”.

ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 61 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e já defendeu 4 ex-presidentes da República, 80 governadores, dezenas de congressistas e ministros de Estado. Além de grandes empreiteiras e banqueiros. Publicado inicialmente em o Poder360.


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NOTA DO EDITOR: Quem conhece o professor Ricardo Cravo Albin, autor do recém lançado “Pandemia e Pandemônio” sabe bem que desde o ano passado ele vêm escrevendo dezenas de textos, todos publicados aqui na coluna, alertando para os riscos da desobediência civil e do insultuoso desprezo de multidões de pessoas a contrariar normas de higiene sanitária apregoadas com veemência por tantas autoridades responsáveis. Sabe também da máxima que apregoa: “entre a economia e uma vida, jamais deveria haver dúvida: a vida, sempre e sempre o ser humano, feito à imagem de Deus” (Daniel Mazola). Crédito: Iluska Lopes/Tribuna da Imprensa Livre.