Por Lincoln Penna

Foi cunhado o conceito de presidencialismo de coalizão, cuja difusão decorreu do artigo do cientista político Sérgio Abranches, publicado em 1988, precisamente no ano da promulgação de nossa Constituição.

Não sendo uma jaboticaba, ou seja, algo só encontrado no Brasil, sua aplicação em nosso mundo político acoberta mais do que um simples acordo com forças políticas e partidárias, cujos objetivos programáticos são diferenciados. Nem sempre, contudo, isto deixa de ser obstáculo para os governos que promovem tais coalizões.

Mas, o que costuma acontecer são composições, cujo alinhamento político se dá por interesses distintos que convergem para um pacto geralmente de fôlego curto. Este ao ser firmado libera os objetivos distintos de modo a desfigurar o compromisso originalmente assumido pelo presidente eleito. Tudo em nome da governabilidade possível.

A República no Brasil conheceu como primeira manifestação desse fenômeno, próprio de nossa cultura política, por ocasião da chamada “Consolidação da República”, logo após sua “Proclamação”. Ela se deu no governo do vice-presidente em exercício na presidência da República, Floriano Peixoto (1891-1894).

Contestado sua posse por não ter cumprido o presidente Deodoro da Fonseca metade de seu mandato, forçado que fora à renunciar, o seu vice conheceu forte oposição. Esta se baseou no artigo 42 da primeira Constituição republicana, que ao término dos trabalhos da Constituinte o elegeu juntamente com Deodoro. Assim, ao ser empossado, Floriano teve de enfrentar a Revolta da Armada (setembro de 1893 a março de 1894).

Essa primeira guerra civil logo no início da República fez convergir dois interesses que não eram originalmente convergentes: o da oligarquia paulista, desejosa de um ambiente de segurança institucional, e o de Floriano que precisava dos recursos financeiros de São Paulo para fazer frente à insurgência da Armada e permanecer à testa da presidência.

Foi nesse contexto que entra em cena o acordo de compromisso que deu lugar à composição, impensável à época para os florianistas mais ardorosos. Campos Sales, que iria se tornar mais à frente presidente, sugeriu que o tal artigo invocado pelos que se opunham a Floriano não se aplicava, uma vez que omitia o que o artigo 47 tornava explícito ao se referir ao presidente eleito pela via do sufrágio do povo. Quando Deodoro e Floriano foram eleitos pelos constituintes a eleição foi, como diríamos hoje, indireta, sem o voto do eleitorado.

Vigorou a tradição conciliatória que faz parte dos arranjos políticos que buscam driblar os obstáculos arranjando jeitos para contentar a todos. Pode, dessa maneira, compor interesses divergentes desde que ambas as partes se beneficiem. O que importa é que selado esses acordos haja vantagens para ambos os lados contratantes. No caso do arranjo à época da “Consolidação”, saiu beneficiado o Exército que venceu objetivamente a oficialidade da Marinha, a estabilidade institucional de modo a favorecer o desejo da São Paulo, centro do poder oligárquico na Primeira República, após superada a crise em torno da governança de Floriano. E, por fim, a erradicação dos nichos que ainda persistiam de restauradores da monarquia.

Quando da realização do acordo com a oligarquia paulista surgiria o florianismo de governo em contraste com o florianismo de rua ou popular surgido durante o confronto com a Marinha no qual o povo da capital se posicionou em favor de Floriano. Época em que o Porto do Rio fechado em razão do conflito fez encarecer as mercadorias de primeira necessidade por parte dos aproveitadores, o que provocou a intervenção de Floriano fechando os estabelecimentos que agiam em proveito próprio.

O que se passa no Brasil de hoje com a presidência de Lula tem a ver com um presidencialismo de composição, tal como ocorrera no início da República. A composição de interesses divergentes presidiu a mais recente recomposição ministerial promovida pelo presidente Lula, passado pouco mais de seis meses de governo. Apesar de pautas diversas e algumas delas – não poucas – bem divergentes, falou mais alto os interesses compartilhados, embora distintos.

Reproduz hoje essa dualidade que fez Floriano assumir dois compromissos, o de governabilidade e o que garantiu sua liderança popular ao sintonizar-se com as demandas do povo trabalhador.

Ficou provado que o voto no Legislativo tem um custo bem mais alto do que supunha o eleitor. Ele consegue tornar secundário um programa de governo e os compromissos assumidos pelo presidente eleito. Ainda bem que o voto em defesa das práticas democráticas e anti-fascistizantes que rondavam e ainda rondam o país venceu tendo Lula a frente, independentemente de se cumprir com maior ou menor rigor os tais compromissos populares desde já, como aliás faz parte de sua trajetória bem sucedida.

Mas, é preciso que saiba equilibrar bem esses dois compromissos, o da governabilidade e o de sua vocação em realizar os desejos populares. Sem o quê prender-se só no equilíbrio é pouco para um governante diante de tantos desafios que temos pela frente.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

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