Por Lincoln Penna –
Temos sustentado que desde o advento do golpe de 1964, interrompido mas não inteiramente superado e sobre o qual quase nada se apurou quanto aos males produzidos não apenas sobre aqueles que ousaram combatê-lo. Além disso, porque subordinou o país aos grandes e poderosos interesses internacionais.
Retirados momentaneamente dos cargos da governança civil e de seu circuito político de forma mais ostensiva, os militares passaram a dar cobertura a governos que mantiveram a orientação subalterna, tais como os governos de Temer e Bolsonaro beneficiados pelo golpe contra a presidente Dilma Rousseff. No caso de Bolsonaro a apostar num projeto regressista do qual passou a gerenciar.
O golpe continuado teve mais um capítulo no dia 8 de janeiro, quando da ação de vandalismo nas sedes dos Três Poderes da República, já amplamente comentado e agora materializado com o decreto retirado da residência do então ministro e secretário do governo do Distrito Federal Anderson Torres. objetivo desse documento tem a ver com o atentado, que visava provocar a intervenção das Forças Armadas ou pelo menos de alguns de seus quadros, tal como acontecera nos dois primeiros dias de abril há 59 anos, quando da deposição do presidente João Goulart.
Não restam dúvidas quanto ao envolvimento de militares de várias forças no episódio de grandes repercussões internacionais, de modo a mobilizar as autoridades de vários organismos como a ONU e a OEA, ambas através de manifestações de repúdio aos atos de vandalismo cometidos por adeptos do presidente derrotado nas urnas.
O que importa no momento é punir com o rigor da lei os operadores e ativistas desse movimento que se destinava à pavimentar a volta do presidente autoexilado nos EUA por meio de uma ação golpista. Lá o ex-presidente tem permanecido na expectativa de uma improvável reviravolta capaz de fazê-lo retomar o poder negado pelo povo nas urnas.
E esta volta estaria prevista se pudesse contar com algum respaldo dos militares e da conivência oportunista de alguns quadros em seus postos institucionais, fossem eles vinculados a governos, à magistratura ou mesmo aos poderes legislativos. Fato é que, a democracia como espaço de disputa amparada constitucionalmente não poderia como não se curvou a essa manobra insidiosa e subversiva.
É necessário que doravante estejamos prontos e permanentemente mobilizados para que novas aventuras possam vir a ocorrer. Afinal, não estamos tratando tão somente de alguém tresloucado acompanhado de um bando de alucinados fanatizados. Trata-se de uma articulação que transcende essas justas adjetivações, porém com grau de importância muito maior, pois estamos lidando com o fascismo.
Dizia em um outro contexto e por meio de uma crônica semelhante a esta, que o fascismo é um fenômeno insidioso. Muito embora ele seja a resposta às crises mais agudas do capitalismo, sobretudo quando elas atingem e fazem reforçar as lutas sociais por melhores condições de vida; a sua irrupção depende de fatores motivadores que podem vir a torná-lo uma alternativa para amparar os medos de segmentos sociais tementes de mudanças substanciais na vida das sociedades em crise.
O temor da ascensão das massas excluídas ou afetadas diretamente pelo desemprego, a subnutrição e a perda cumulativa da parca qualidade de vida provocam nesses segmentos intermediários o fantasma da proximidade com esses contingentes excluídos material e existencialmente dessas sociedades em crise, e em guarda contra qualquer mudança em suas estruturas sociais.
Daí ser insidioso, uma vez que surge como uma forma de marcar a indignação decorrente do mal-estar que abala o curso das vidas de indivíduos que se sentem inseguros diante dos mais variados cenários que são projetados. Mais amplamente a partir das redes sociais que são utilizadas como ferramentas decisivas para difundir o quadro de insatisfação generalizada vivido por todos e explorados pelos que desejam a adoção de medidas duras contra os supostos responsáveis.
Assim, ao mesmo tempo que o fascismo estimula a insegurança também destila o ódio contra aqueles que identificam seus intentos antidemocráticos. Nesta disputa narrativa os recursos de defesa contra as falsas ameaças de inimigos costumeiramente invocados, como o comunismo, as esquerdas, e todos aqueles que se batem contra a intolerância de toda sorte, os democratas enfim, são criminalizados perante essa audiência receptiva a tais mensagens.
Resistir a essa farsa é fortalecer a democracia enquanto espaço público da convivência do contraditório, cuja permanência como garantia desse exercício com base na argumentação é essencial tanto para a política quanto para a sua dimensão mais conflituosa, as lutas de classes. Somente o acatamento dos espaços e das práticas democráticas podem conduzir a resultados legitimados. E isto se aplica igualmente às demais instâncias organizadas da sociedade, especialmente os partidos políticos. Nestes, a absoluta coexistência das diferenças só pode fazer avançar o nível de percepção dos problemas a serem enfrentados. Jamais considerar os divergentes como antagônicos.
A apropriação ideológica da democracia é uma forma de limitá-la, porquanto a conduz ao confinamento de uma leitura parcial da problemática social e política, diferentemente de sua adequação a formas de organização das sociedades, que podem obedecer aos interesses exclusivistas dos que detém a propriedade dos meios de produção ou daquelas formações que se fundam no direito coletivo dos bens sociais. Aí sim se aplica qualificá-las de acordo com os interesses privados ou comunitários.
A democracia é um substantivo. Adjetivá-lo é possível, como muitos preferem fazê-lo para diferenciar as interpretações que tenham de seu emprego. Contudo, o que mais importa não está em seu conceito genérico, mas na imperiosa necessidade de saber o que fazer da democracia concretamente num país que tem sido historicamente antidemocrático, seja na exclusão de inúmeros contingentes sociais ou na simples distribuição da renda, de modo a torná-la uma sociedade fundamentalmente antidemocrática.
Ou se explicitam as desigualdades com as quais convivemos e as combatamos diuturnamente, ou iremos reproduzir as velhas sentenças condenatórias de muitos dos que as exibiram em múltiplos espaços de configuração dessa situação humilhante, seja na literatura ou nas ciências sociais e históricas, sem que se tenham tido iniciativas efetivas para alterar essa situação secular entre nós.
Para começo de conversa, o golpe continuado tem de ser definitivamente superado, e ele só o será com a disposição de inventariar o desmonte de um estado que tem abrigado seus efeitos mais perversos. Os rumos adotados há seis décadas precisam ser alterados substancialmente para trilharmos o caminho da emancipação nacional e popular.
Por fim, para liquidar com os vestígios acumulados no tempo e apenas modernizado pelo golpe-mãe de 1964 é indispensável que nos unamos para mobilizar as consciências lúcidas e democráticas desse país para incrementarmos os caminhos da nossa história revisada e corrigida com vistas a uma radical política de inclusão social.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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