Por Lincoln Penna

Sergio Buarque de Holanda, historiador e intelectual participante da vida política nacional, integrou uma geração que revolucionou a historiografia brasileira. Em 1936, aos 34 anos de idade publicou sua primeira obra, o livro Raízes do Brasil. Tornou-se mais conhecido quando editou “O Homem Cordial”, mas a sua obra mais profunda para mim e para uma boa parte da torcida do flamengo, creio, é “Visão do Paraíso”, editado pela brasiliense em 1959, tendo várias edições desde então.

Não pretendo aqui discorrer sobre essa obra maior de um dos mais destacados historiadores do Brasil, pois prefiro que os leitores deste artigo leiam a obra maior de Holanda, sugestão que faço naturalmente aos que ainda não a leram. O que desejo na verdade ao mencioná-la e tomar para essa reflexão o título de seu trabalho de referência, que projeta sua análise para o nosso passado, é inverter esse caminho, isto é, tentar projetar o paraíso numa perspectiva de futuro, tal qual os intrépidos aventureiros que singraram os mares em busca do eldorado.

Por que olhar o nosso passado de forma tão otimista se a realidade brasileira não a comporta? Como em face de uma realidade tão cruel para boa parte de nosso povo e nada plenamente seguro e satisfatório para as camadas médias urbanas, cujo processo de empobrecimento, menos até material do que moral, tem sido progressivo, é possível garantir que tenhamos perspectivas positivas para que sonhemos que dias melhores possam vir?

Eis algumas das muitas questões que podem vir a questionar a visão paradisíaca de uma sociedade múltipla étnicamente falando, assim como cultural, social e regionalmente plenas de contradições, em face das defasagens visíveis e há muito consolidadas bastando para tanto uma breve consulta aos indicadores que apontam para a enorme desigualdade e ao mesmo tempo a rica diversidade de nosso povo.

Contradições que merecem ser examinadas.

É nesse mosaico que reside o nosso potencial transformador, não obstante o fato assinalado no subtítulo, isto é, o de enfrentarmos a dificuldade diante da constatação de que há uma ausência entre nós de um ativismo coletivista em condições de empurrar a todos e a todas para a busca de novos horizontes. É aí que reside a resposta às perguntas acima formuladas, pois creio que elas se encontram na capacidade de nosso povo mais humilde de se reinventar a despeito da continuada adversidade.

A essas questões é inevitável que se faça uma outra pergunta de maneira à acrescentar mais um aspecto a esse emaranhado conjunto de indagações a suscitar dúvidas quanto aos caminhos de nossa verdadeira emancipação. A pergunta subsequente não poderia ser senão a que faz a seguinte interrogação: como esse povo excluído dos bens por ele próprio produzidos graças a força de trabalho por ele empreendida pode ser capaz de construir as bases de um novo mundo paradisíaco? A esta indagação acrescente-se a sua precariedade no que diz respeito ao grau de percepção consciente da realidade que o oprime, aliada a baixa organicidade em condições de se propor como um protagonista histórico.

Operar as grandes transformações de que necessitamos é de fundamental importância para que alcancemos um patamar mínimo de dignidade, objetivo indispensável para que nos tornemos parceiros de um projeto que altere a realidade que parece imutável porque naturalizada e difundida pelos aparelhos ideológicos, instrumentos próprios das estruturas de poder em vigor.

Essa questão das massas populares chegou a ser levantada por um filósofo em fins dos anos 50 do século próximo passado e início dos sessenta do mesmo século. Trata-se de Álvaro Vieira Pinto, professor catedrático da então Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (atual UFRJ), e membro do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).

IFCS/UFRJ. (Divulgação)

Muito embora tenha suscitado curiosidade em face de sua tese da “revolução das massas”, Vieira Pinto não a aprofundou a ponto de provocar maiores controvérsias no seio da intelectualidade voltada para o exame e o questionamento da realidade brasileira. Fora o espaço do ISEB, circunscrito à nata de uma intelectualidade operante e comprometida com mudanças substantivas a debaterem as teses mais em voga, não houve grande difusão de suas ideias à propósito do papel das massas.

Naquele tempo em que se discutia o papel de uma suposta burguesia nacional entendida como tendo um potencial revolucionário em face da sua eventual participação em um enfrentamento diante das ameaças do imperialismo e, portanto, em condições de integrar um processo revolucionário, a tese de Vieira Pinto não mereceu maior atenção, até porque careceu de uma fundamentação prática centrada na política conjuntural daquela época. Predominava naquela ocasião a ideia de uma revolução democrático-burguesa ou nacional-democrática, ambas tendo na burguesia dita nacional um papel indispensável para a aliança fundada no mundo do trabalho.

Com o passar das décadas e tendo em vista as alterações ocorridas nas áreas econômicas, demográficas – com o deslocamento massivo de grande parte da população do campo para as cidades -, as questões sociais não só permaneceram intocáveis como passaram a se aprofundar tornando as periferias das grandes metrópoles um cenário no qual vários problemas, agravados pela incúria e a inércia das elites governantes do País, insensíveis e incompetentes. Neste caso, quando tentam minimizar os efeitos danosos da vulnerabilidade das massas desassistidas.

Junto a esse desinteresse pela sorte do povo existe também o uso perverso dos expedientes populistas com fins eleitoreiros que só produzem com o tempo o afastamento da política por parte dos segmentos sociais mais afetados por esse comportamento solerte e antissocial.

Existe, portanto, uma massa dispersa, de baixíssimo grau de cidadania e desprovida dos elementos básicos de teor educacional porque mal alfabetizada a manifestar o que os especialistas da área educacional denominam de analfabetismo funcional, pois leem dizeres sem compreendê-los, fruto de um ensino precário dada as condições de aprendizagem, além dos métodos pouco atrativos.

Diante desse quadro social beirando à exclusão permanente de gerações de brasileiros torna-se necessário um lento, porém vigoroso e continuado trabalho de conscientização, único caminho para transformar esse povo marginalizado em parte integrante de um processo que revolucione essa realidade tão massacrante.

Além disso é preciso travar um embate ideológico com seitas oportunistas a serviço dos interesses instalados que manipulam e exploram essa malta refém de sua miséria, convencendo-a a crer numa hipotética redenção, quando na verdade está sendo usada para projetos de continuidade do modo de vida responsável pelas mazelas sociais da qual faz parte essa gente humilde e espoliada.

O que não foi possível a Álvaro Vieira Pinto sustentar em razão de uma conjuntura que privilegiava os modelos em voga e a primazia das forças sociais mais consequentes, pelo menos aparentemente, agora nessa conjuntura na qual é sabido não se contar com segmentos quaisquer de uma burguesia supostamente contrafeita pela ação do grande capital, até porque toda as burguesias mundo afora se integraram de forma uníssona.

Morro da Providência, a primeira favela do Rio de Janeiro, criada em 1897. (Reprodução)

Resta-nos contar com a força emergente dos indignados e eles alcançarem a consciência para si, de modo a se transformarem em agentes do novo mundo, cuja chegada pode tardar, mas virá com a certeza. Com a mesma certeza de que é insustentável a combinação desastrosa dos males sociais responsáveis pela manutenção das desigualdades entre os seres humanos e a progressiva e sistemática agressão à natureza.

A pensar uma revolução que seja capaz de construir uma visão de um paraíso na Terra é indispensável que ela seja social e ambiental, porquanto isoladamente nenhuma delas será bem-sucedida.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

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