Por Kakay –
Neste momento, somente a imputação de homicídio pode nos representar …
“Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, roubar-nos a luz, e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
– Eduardo Alves da Costa, poema “No caminho com Maiakóvski”…
Depois de meses com o país inteiro acompanhando a CPI da Covid no Senado Federal, vamos, enfim, conhecer o relatório final. Não há dúvidas de que essa foi a comissão parlamentar de inquérito mais importante que tivemos. Por uma razão simples e grave: tinha como fundamento enfrentar e investigar a responsabilidade dos políticos e empresários no trato com a maior crise sanitária da história do Brasil. Uma tragédia que resultou em 600 mil brasileiros mortos.
Por 6 meses, todos nós, de uma maneira ou de outra, tratávamos de acompanhar, como num filme, o avanço das acusações, das investigações e das teias que se desenrolavam em outras teias quando o novelo ia sendo desenrolado.
As imputações criminais dão ensejo quase a um código penal próprio. É extensa a lista dos delitos: epidemia, infração de medida sanitária preventiva, omissão de notificação de doença, charlatanismo, incitação ao crime, falsificação de documento particular, falsidade ideológica, uso de documento falso, emprego irregular de verbas ou rendas públicas, corrupção passiva, prevaricação, advocacia administrativa, usurpação de função pública, corrupção ativa, fraude em licitação ou contrato e fraude processual.
Certamente, o trabalho dos senadores e da valiosa equipe de assessores do Senado cuidou de fazer uma análise técnica para não dar margem a críticas e falhas. Lembro-me da genial Cecília Meirelles, no “Romanceiro da Inconfidência”, poema “Das Sentenças”:
“Já vem o peso do
mundo com suas fortes sentenças.
Sobre a mentira e a verdade
desabam as mesmas penas.
Apodrecem nas masmorras, juntas,
a culpa e a inocência.
…
Já vem o peso da vida,
já vem o peso do tempo:
pergunta pelos culpados
que não passarão tormentos,
e pelos nomes ocultos
dos que nunca foram presos.
Diante do sangue na forca
e dos barcos do desterro,
julga os donos da Justiça,
suas balanças e preços.
E contra seus crimes lavra
a sentença do desprezo”.
Mas algo me chama a atenção. Essa CPI foi criada para analisar os motivos do desastre criminoso que levou a essa catástrofe no Brasil. O rol de imputações já define o tamanho do nosso drama e da nossa dor. Quando do início das investigações, dividíamos o acompanhamento dos casos com a barbárie que se instalava no país, uma perplexidade mórbida nos amordaçava.
A falta de ar que sufocava Manaus fazia o nosso ar ficar rarefeito por uma solidariedade humana. A descoberta dos desvios milionários dava a sensação de um mergulho num lago gelado, sem luz e sem saber nadar. Era a solidão nos sufocando e nos inquietando. O cinismo do presidente da República, ao se desnudar um sádico, ignorante, mau, sem empatia e sem caráter, foi deixando de ser folclore para virar caso de polícia.
Sempre é bom lembrar de Rainer Maria Rilke:
“Escuridão, minha origem
Amo-te mais do que a chama, que é limitada
porque só brilha
num círculo qualquer
fora do qual ninguém a conhece.
Mas a escuridão tudo abriga
figuras e chamas, animais e a mim
]E ela também retém seres e poderes.
E pode ser uma força grande que perto de mim se expande.
Eu creio em noites.”
Um muro invisível e impenetrável passou a separar as pessoas. De um lado, os facínoras, os bárbaros e os canalhas que lucravam com a morte e com a dor; do outro, as pessoas, perplexas e perdidas, a resistir e, muitas vezes, tendo que dividir a resistência com a dor da perda de alguém querido pela doença.
Algo, porém, sinto que falta ao relatório e que define, de certa forma, a expectativa de todos nós que acompanhamos o desenrolar das investigações. Por mais que a CPI tenha, correta e brilhantemente, descoberto o interesse financeiro por trás de todo o enredo macabro, com as necessárias imputações de crimes seríssimos, o que originalmente o Brasil espera e merece é ver o presidente da República ser responsabilizado pela morte de milhares de brasileiros. Esse é o fato mais relevante.
Claro que temos todos nós a obrigação, moral até, de levarmos esses canalhas às barras dos tribunais internacionais, bem como aos tribunais locais, para que sejam responsabilizados pelos inúmeros crimes. Mas a imputação de homicídio, por omissão, é a única que vai representar os milhões de brasileiros que perderam seus entes queridos pela ação criminosa do presidente da República e seus asseclas.
Não há nenhuma linha de investigação que, tecnicamente ou não, pode dar uma resposta ao povo brasileiro, especialmente àqueles que perderam filhos, mães, pais, irmãos e amigos. São milhares de brasileiros insepultos a rondar as nossas vidas como que à procura de uma explicação para a barbárie. Não há explicação! Nada vai aplacar a dor.
Não há nenhuma linha de investigação que, tecnicamente ou não, pode dar uma resposta ao povo brasileiro, especialmente àqueles que perderam filhos, mães, pais, irmãos e amigos. São milhares de brasileiros insepultos a rondar as nossas vidas como que à procura de uma explicação para a barbárie. Não há explicação! Nada vai aplacar a dor.
Mas há um grito contido nas nossas gargantas e represado nos nossos peitos: assassino!
Somente a imputação de homicídio pode nos representar. Por isso, estou apresentando, juntamente com meus sócios do escritório, uma recomendação ao senador Renan Calheiros, relator da CPI da Covid, para propor o indiciamento do Presidente da República pelo crime de homicídio e lesão corporal. A CPI deve isso ao Brasil. Em homenagem aos que se foram e em respeito à dor dos que ficaram.
Recorro-me sempre ao lúdico Manoel de Barros:
“Ando muito completo de vazios
Meu órgão de morrer me predomina
Estou sem eternidades
…
A minha independência tem algemas.”
KAKAY ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 61 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e colunista da Tribuna da Imprensa Livre. Publicado inicialmente em Poder 360.
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MAZOLA
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