Redação

Sobre liberdade acadêmica e ética universitária: o caso do Professor Conrado Hubner Mendes

Por Ana Maria de Oliveira Nusdeo – Professora Associada da Faculdade de Direito da USP.

Desde a redemocratização, quando nos livramos do jugo da censura prévia à imprensa, aos artigos de opinião e até à produção cultural, o país conviveu bem com a liberdade de expressão, e intelectual. Sustentando uma imprensa livre e crítica, tem sido um dos esteios da democracia no país, com a importante tarefa de apontar as necessárias críticas à atuação das figuras públicas. A posição de que autoridades devem se submeter a manifestações críticas, aliás, é amplamente reconhecida nas decisões judiciais.

Infelizmente, a implementação de direitos e uma educação para a cidadania não se desenvolveram na mesma toada, o que facilita a agentes políticos com arroubos autoritários, agora em postos chaves das instituições, embaralhar as fronteiras entre a liberdade de expressão e seus limites, tais como a propagação de notícias falsas ou a pura difamação. Também o conteúdo da liberdade acadêmica é pouco compreendido e facilmente atacável nesse jogo.

É nesse cenário que o meu colega Conrado Hubner Mendes, professor da Faculdade de Direito da USP e também colunista do jornal Folha de São Paulo, passou a ser vítima de perseguição, em reiteradas ameaças à sua liberdade de manifestação do pensamento e intelectual, essa última essencial à atividade acadêmica. Lamentável, mas não surpreendentemente, o Procurador Geral da República ajuizou queixa-crime contra o professor, em 20 de maio deste ano. Mais recentemente, Kássio Nunes, Ministro do Supremo Tribunal Federal pediu ao Procurador Geral que o investigasse por “afirmações falsas e levianas”.

O contexto dessas investidas é o da análise crítica que faz o colunista professor às decisões (ou omissões) desses ocupantes de altos cargos na hierarquia das instituições jurídicas do país. É digno de nota que o Procurador Geral, além da queixa-crime, também fez uma representação contra o professor ao Conselho de Ética da USP. Aí o embaralhar de fronteiras atingiu também a liberdade intelectual e acadêmica. É sobre esse último aspecto que gostaria de chamar a atenção neste espaço.

Como professor, Conrado Mendes pesquisa sobre o funcionamento e a atuação de instituições, em especial as cortes constitucionais. Sua atuação como colunista reflete as pesquisas que realiza e que o fazem um destacado conhecedor de seus meandros.

Assim, transitando no espaço jornalístico, utiliza seus conhecimentos jurídico-institucionais para levar ao grande público as distorções dos comportamentos individuais e colegiados que atentam contra o bom exercício de suas funções e mesmo contra à correta concepção dessas mesmas instituições. Como convém nesse espaço de grande imprensa, adota linguagem crítica, por vezes ácida, mas que não ultrapassa os limites de sua liberdade de manifestação de pensamento. Nunca as críticas que endereça às autoridades quanto ao exercício de suas competências legais e constitucionais se baseia em fatos falsos. Tampouco promove defesas de pautas e posições político-partidárias.

Como professora da USP, sou também submetida às regras do seu Código de Ética, voltadas a efetivar a missão da Universidade de busca do conhecimento “até onde a procura pela verdade conduzir”. Essa verdade, conforme a área do conhecimento leva, por exemplo, às demonstrações de que as mudanças climáticas existem e avançam significativamente; ou de que remédios, sem eficácia comprovada ou indicados para a cura de vermes e fungos não curam a infecção viral causada pelo Coronavírus. Nas ciências sociais aplicadas, a busca da verdade pode descortinar dados, informações, mas também juízos críticos sobre as patologias sociais e o papel das instâncias de poder na criação ou reprodução dessas mesmas patologias.

A Universidade, além disso, organiza sua missão no chamado tripé do ensino, pesquisa e extensão, consideradas atividades indissociáveis. Assim, o professor e pesquisador também deve estender seus conhecimentos, resultados e juízos críticos sobre sua pesquisa à sociedade de modo geral.

Por isso, o que o Professor Conrado Mendes faz é procurar a “verdade”, enquanto sinônimo do conhecimento plausível e justificável, na atuação das instituições da República. Onde elas falham e quando se desviam de objetivos republicanos. Saindo do encastelamento da Universidade e da produção acadêmica típica, que tende a ser pouco acessível ao grande público, estende seu conhecimento à sociedade por meio de artigos de opinião e colunas jornalísticas. Com essa atuação, não viola regras jurídicas, nem a ética universitária.

Um outro ponto de confusão sobre os limites éticos da liberdade de expressão do pensamento e a acadêmica tem a ver com manifestações políticas.

O mesmo Código da Ética da USP veda o proselitismo religioso e político partidário. Assim, não devem professores e professoras manifestar seu apoio ou preferência a candidatos, partidos ou a credos religiosos em sala de aula, vale dizer, no exercício do magistério. Isso, no entanto, é diferente de criticar, quando pertinente à matéria, medidas e projetos governamentais, bem como políticas públicas mausucedidas e, no caso do estudo do Direito, as decisões e posições das instituições judiciárias: Ministérios Públicos, Advocacia Geral da União, etc. As restrições éticas referidas, além disso, são limitadas ao espaço do magistério, não estando os professores sujeitos às restrições em outros espaços. Nem a Universidade está proibida de realizar debates políticos. É comum e desejável a iniciativa de centros e movimentos acadêmicos, coordenados por estudantes, de convidarem políticos para debaterem suas propostas ou temas diversos no seu espaço.

Embora tenha fragilidades – decorrente da profunda desigualdade social e de acesso ao ensino e à informação – pode-se reconhecer que Brasil conseguiu construir instituições e valores, como a liberdade acadêmica, ao lado daquela de expressão do pensamento. O desafio é fazer com que esses valores sejam bem compreendidos por amplos segmentos da sociedade e, o mínimo esperado, que sejam acatados pelos detentores dos mais altos cargos das Instituições que têm, exatamente, o papel e o dever de resguardá-los.

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Conrado Hübner Mendes enfrenta o Leviatã brasileiro

Por José Mattos, jornalista e escritor.

As relações entre a imprensa e os governos são tensas por definição. À imprensa cabe vigiar o governo, uma função reconhecida como inerente ao bom funcionamento da democracia. E nenhum governo gosta de ser vigiado, principalmente se esta vigilância é exercida com publicidade. Nenhuma autoridade pública gosta de ver seus atos atacados por jornalistas, colunistas, especialistas em artigos e postagens, reportagens de televisão, rádio e toda esta enorme estrutura conhecida como redes sociais. Melhor seria governar tranquilo sem esta perda de tempo de ter que de tempos em tempos se explicar, mostrar as contas, as razões.

A tentação de desmoralizar o trabalho da imprensa é enorme e vez por outra alguém investido em uma alta função pública resolve trilha-lo. Os recursos são sempre os mesmos, são ataques dizendo que os jornais estão querendo mais dinheiro dos governos, que os jornalistas são todos comunistas ou fascistas e trabalham para a destruição da ordem pública, do respeito às instituições com a finalidade de trazer novos regimes políticos para o país e por aí vão.

Debaixo destes ataques há sempre uma autoridade mal preparada para exercer a sua função.

Uma das mais recentes vítimas deste comportamento é o advogado, professor e colunista da Folha de São Paulo Conrado Hübner Mendes. Conseguiu a proeza de ser acionado ao mesmo tempo na justiça pelo Procurador Geral da República e por um Juiz do Supremo Tribunal Federal. Eu não vou escrever o nome deles, porque o nome deles não importa. Mais do que João ou José eles são funcionários públicos brasileiros. Ocupam altos postos, possuem alta renda, grandes benefícios, estão vivendo de forma confortável e gloriosa o final de suas carreiras. E nesta condição de funcionários públicos eles podem, e devem, responder críticas justas e injustas, escritas com boa ou com má fé. É direito e dever deles explicar o que fizeram, e porque fizeram, sempre que seus atos forem contestados e criarem polêmicas públicas.

O grave é estarem o PGR e um Ministro do STF aliados para calarem a opinião de Conrado. E o crime seria que ele critica com contundência as ações desta dupla de agentes públicos. Ele escreve frases desagradáveis, grosseiras até, sobre os dois, e as publica em um dos maiores jornais brasileiros.

Para a dupla parece que não basta a genuflexão da imprensa, eles querem que os jornalistas se ajoelhem sorrindo. Eles somente aceitam serem chamados à atenção com o tratamento protocolar correto, só aceitam ataques vindos de punhos de renda, como se antigamente dizia. Eles não defendem as causas pelas quais Conrado os atacou, não explicam onde ele errou no mérito, eles estão ofendidos porque não foram tratados com o tal devido respeito.

Só que isto da muito trabalho. É melhor, mais fácil, usar a máquina do estado ali à disposição, e sem custos para eles, para intimidar, para fazer o crítico engolir o que escreveu. É muito mais simples e muito mais errado.

Ao final da história, o Estado brasileiro irá dever mais aos que vigiam, responsabilizam, cobram dos agentes públicos que ajam de acordo com os princípios da república e da democracia, do que a eventuais autocratas a viverem debaixo das asas do leviatã.

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Solidariedade a Conrado Hübner Mendes e abaixo a ditadura!

Por Rubens Russomanno Ricciardi – professor titular da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP.

Segundo Rosa Luxemburg (judia da Polônia e vanguarda dos trabalhadores na Alemanha), “liberdade apenas para os partidários do governo – ainda que sejam em grande número – não é liberdade. Liberdade é sempre liberdade de pensar diferente”. Jamais devemos esquecer esses princípios da dignidade política. Contudo, após o breve período de liberdade democrática (1985-2017), novamente a ameaça do autoritarismo ronda o Brasil. O atual Governo Federal vem ofendendo a Constituição Federal de 1988, tentando aniquilar certas possibilidades de oposição. Parece que pretende apenas ser condecorado, não obstante suas políticas de destruição sistemática da Amazônia e do Pantanal, das instituições republicanas, do Estado social, das universidades federais e demais órgãos de artes e ciências e ainda, tal como a CPI do Senado vem provando reiteradamente, após ter promovido a sindemia da Covid-19 enquanto negócio, o que resultou na morte de mais de meio milhão de brasileiros, definido por muitos como genocídio de proporções históricas em nosso país.

Eis que agora o Prof. Conrado Hübner Mendes é perseguido por suas publicações, onde aponta irregularidades nas relações entre agentes jurídicos e o executivo, os quais devem ser independentes e harmônicos entre si – e não uns subalternos ao outro. Na condição de especialista em Direito do Estado, o professor da Faculdade de Direito da USP e colunista da Folha não manifesta apenas seu pensamento crítico, mas também o resultado de suas pesquisas acadêmicas. Um país só é democrático se a filosofia for livre, se as ciências forem livres e se as artes forem livres. A liberdade de pesquisa e de pensamento crítico é a conditio sine qua non do conhecimento.

Por fim, segundo Ernst Bloch (filósofo antifascista), “o intelectual é aquele que se recusa a assumir compromissos com os opressores. Faz parte do pensamento, da ação e dos escritos de um intelectual a postura crítica à sociedade repressiva”. Neste sentido, as críticas do Prof. Conrado Hübner Mendes foram restritamente institucionais, chamando a atenção para as deturpações ideológicas em órgãos jurídicos, bem como defendeu nossa Constituição Federal. Por conta disso, manifesto minha solidariedade ao insigne colega da USP, bem como, lembrando o Dr. Ulysses Guimarães (político brasileiro de saudosa memória), que sim, que “temos ódio e nojo da ditadura”.

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Leia também:

1- ENTREVISTA – Conrado Hübner Mendes: O tema da ética judicial é importantíssimo de ser mais disseminado para que práticas antiéticas deixem de ser normalizadas (por Prestes Filho)

2- Democracia e a Perspectiva Autoritária (por Siro Darlan)

3- Intimidação e degradação da democracia: ainda somos livres? (por Murilo Gaspardo)


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