Por Gabriela Moura de Oliveira

A violência doméstica e familiar contra as mulheres é fruto da objetificação da figura feminina como patrimônio de seu marido, resultado do patriarcado que assombra o nosso meio social.

Para a autora Rita Segato, o patriarcado é uma instituição que se baseia no controle do corpo e na capacidade punitiva de mulheres.1 O patriarcado, dentro do tema a ser abordado, representa o exercício do poder masculino como hegemônico, confundindo os conceitos de mulher e propriedade em que o homem possui seu domínio direto.

Cabe a própria sociedade e, sobretudo, ao Poder Judiciário desconstruir a naturalização da violência contra a mulher como meio de opressão e silêncio, protegendo-a de todas as formas de violência, seja moral; psicológica; física; sexual, ou até mesmo, patrimonial.

A atuação do Poder Judiciário nas situações de violência doméstica e familiar tem início logo após o deferimento das medidas protetivas, as quais são instrumentos efetivos de proteção à vida da mulher.

Assim, na maioria das vezes, a medida protetiva referente ao afastamento do agressor do lar é aplicada ao caso concreto com o intuito de amparar e salvaguardar o bem estar e a segurança da vítima.

Ocorre que, em muitas das vezes, os agressores não aceitam o afastamento, pois a propriedade/posse da residência em comum também lhes pertence. A partir desse momento, se iniciam tentativas de esvaziamento do conteúdo protetivo da Lei Maria da Penha.

O agressor pode vir a adotar algumas condutas de natureza extrajudiciais e até judiciais. A título de exemplo de comportamento extrajudicial está o corte de luz, água e gás. De outra forma, na seara judicial, o agressor se utiliza de pedidos de tutela

antecipada de urgência, sem mencionar o afastamento decorrente da existência de medidas protetivas no âmbito da violência doméstica e familiar, com o fim de reaver a sua propriedade/posse do lar conjugal ou, até a compensação financeira pelo período em que a vítima estava na posse exclusiva do imóvel.

Desse modo, há uma inversão de posições, na qual a vítima se torna ré e culpada pelo afastamento de seu agressor, sendo condenada a pagar-lhe, até mesmo, uma compensação à título de aluguel.

Nesse panorama, há possibilidade de a vítima se tornar refém de sua própria medida protetiva, na medida em que continua sendo violentada, mesmo após o afastamento de seu agressor, como um efeito processual boomerang, o que pode resultar em desestímulo a novas denúncias de violência.

Frisa-se a existência de nítido conflito entre as decisões judiciais, pois enquanto em um processo a vítima é protegida pelo Sistema de Justiça, no outro é obrigada a compensar seu agressor por esta mesma proteção.

Em que pese o direito pelos frutos percebidos da coisa e pelo dano causado a um dos condôminos, nos termos do artigo 1.319 do Código Civil, na circunstância em voga não se pode aplicar a literalidade da lei sem que haja a análise do caso concreto.

Portanto, não é razoável que a vítima de violência doméstica seja condenada ao pagamento de qualquer tipo de compensação ao seu agressor em virtude do afastamento do lar determinado por meio de decisão judicial, sobretudo, se esta estiver transitada em julgado.

Logo, haverá violação à coisa julgada neste caso, tendo em vista que a vítima somente estava na posse exclusiva do imóvel devido ao afastamento do agressor conduzido e realizado pelo próprio Poder Judiciário como medida de proteção à vida e a dignidade da mulher, sob pena de responder por descumprimento de determinação judicial.

Destaca-se que ao conseguir se libertar de seu algoz, tudo o que a vítima precisa é de amparo, principalmente, do Poder Judiciário para que possa restabelecer a sua dignidade como ser humano, uma vez que esta lhe foi tolhida durante o relacionamento abusivo.

A atuação do Poder Judiciário não pode ser instrumento de vingança e revitimização, pois, mesmo após o deferimento de medidas protetivas, o agressor se utiliza de ações judiciais com o único intuito de perpetuar a violência em suas diversas

formas, em súbita tentativa de retirar a eficácia da proteção jurídica conferida às vítimas de violência doméstica e familiar.

O fenômeno aplicado pela defesa do agressor, nada mais é do que o denominado tu quoque, instituto inserido na boa-fé objetiva processual que veda condutas contraditórias, fazendo com que ninguém se beneficie da própria torpeza.

Assim, tal instituto designa situação de abuso que se verifica quando um sujeito viola uma norma jurídica e, posteriormente, quer se beneficiar da situação.

Todo esse imbróglio tem o intuito de repreender a vítima pelo registro da violência doméstica sofrida e da medida protetiva deferida de afastamento do lar.

O Brasil ratificou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, se comprometendo a eliminar a violência contra a mulher como condição indispensável para seu desenvolvimento individual e social e sua plena e igualitária participação em todas as esferas.

Desse modo, se faz imperiosa a aplicação do Princípio da Convencionalidade pelo Poder Judiciário na análise dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher por meio da aplicação dos Tratados e Convenções Internacionais ratificados pelo país com o fim de erradicar todas as formas de violência contra a mulher.

Resta demonstrada a importância das medidas protetivas no âmbito da violência doméstica e familiar responsáveis por salvar vidas, as quais foram fruto de intensa luta para o seu reconhecimento por instrumentos internacionais, como por exemplo, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, bem como por instrumentos nacionais como o artigo 226, §8º da Constituição Federal e a Lei nº 11.340/2006.

É dever do Poder Público criar mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, resguardando-a de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, segundo os artigos 1º e 2º, §§1º e 2º da Lei nº 11.340/2006.

Por isso, o artigo 8º da Lei nº 11.340/06, determina a manutenção de políticas públicas para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher em conjunto articulado de ações entre os Entes Federativos por meio da integração operacional do Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação.

Logo, cabe ao Poder Judiciário zelar pela segurança imediata da vítima de violência doméstica, de forma a tutelar sua vida e a criar condições necessárias para efetivar o acesso ao seu direito fundamental a dignidade e liberdade.

A presente análise demonstra cristalino conflito entre dois direitos fundamentais, quais sejam, o direito ao uso e gozo da propriedade e a dignidade da mulher como pessoa humana.

Dessa forma, é necessário o uso da ponderação, a fim de enunciar, de forma proporcional e razoável, qual direito irá sobressair em detrimento do outro, segundo os ensinamentos de Robert Alexy2.

Segundo o Ministro Marco Aurélio Bellizze no julgamento do REsp 1.966.556 – SP (2021/0145227-0), a violência doméstica e familiar contra a mulher é motivo legítimo para que se restrinja o direito de uso e gozo da propriedade comum ao agressor, não caracterizando enriquecimento sem causa, devendo ser mitigado o direito fundamental a propriedade.

Destarte, pensar de modo contrário, seria reconhecer a proteção insuficiente a dignidade das vítimas de violência doméstica e familiar, servindo como um verdadeiro desestímulo para que essas mulheres busquem o amparo do Estado.

É de extrema importância a realização de um controle efetivo sobre os processos em que seja parte uma vítima de violência doméstica a fim de verificar o quanto antes a sua conexão de forma a evitar decisões conflitantes, pois condenar a vítima ao pagamento de obrigação pecuniária em decorrência do afastamento de seu agressor do lar conjugal é uma grave violação não só a sua dignidade, mas aos direitos humanos.


Bibliografia:

ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, 1997. p. 81.

SEGATO, Rita Laura. Que és un feminicídio. Notas para un debate emergente. Brasília, 2006.

Constituição Federal.

Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).

Lei nº 10.406/2002 (Código Civil).

Decreto nº 1.973/1996 (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher).

Decreto nº 4.377/2002 (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher)

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