Por Luiz Carlos Prestes Filho

Em entrevista exclusiva para a Tribuna da Imprensa Livre o Conrado Hübner Mendes afirmou: “Não conheço a pessoa do Kassio Nunes Marques, e não tenho nada a dizer sobre ela. Eu deploro a decisão que o ministro Nunes Marques tomou, que escancara, de modo muito agudo, algumas das patologias decisórias mais sérias do STF. Havia um caso na mesa do ministro, que lá ficou por 5 meses. O caso exigia que, em nome da liberdade religiosa, qualquer regulação dos cultos em razão da circunstância excepcional e variável da pandemia, fosse proibida. Depois de 5 meses, num sábado, véspera da Páscoa, poucas horas antes dos cultos de domingo, o ministro profere uma decisão monocrática, liberando os cultos, no pico da pandemia (com 4 mil mortes diárias)”. Para o professor:

“É fundamental que um judiciário maduro e democrático seja criticado, escute críticas, as processe de maneira refletida, acolha as corretas, rejeite as incorretas, e entenda que críticas são oportunidades para aperfeiçoamento institucional. Acadêmicos e jornalistas não deixam de eventualmente errar nas críticas, mas produzem material valioso sobre o judiciário. Muito diferente de críticas são os ataques e ameaças.”

Conrado Hübner Mendes é jurista e professor universitário, Professor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Luiz Carlos Prestes Filho: Como professor do Direito Constitucional você tem acompanhado falhas do judiciário no Brasil. Poderia destacar aqueles desvios que ocorreram nos últimos anos no judiciário? Em especial, aqueles que ameaçam a democracia no país?

Conrado Hübner Mendes: Eu acredito que o judiciário brasileiro, apesar de alguns avanços, tem graves problemas de diversas ordens. São problemas de cultura institucional e corporativa, de ideologia jurídica, de arquitetura institucional e de ética institucional. Em síntese, e com o perdão da generalização que não necessariamente ignora pontos de luz, é um judiciário que resiste ao aprofundamento democrático. Isso se aplica ao judiciário mas também, em boa parte, ao sistema de justiça em geral, em especial ao ministério público. Para exemplificar cada uma daquelas quatro dimensões, é possível dizer que do ponto de vista da cultura institucional e corporativa, o judiciário brasileiro investe enorme energia, e por métodos da baixa política, para acumular privilégios rentistas ilegais. Desenvolveu um repertório de técnicas para violar a lei. E como são eles mesmos os intérpretes últimos da lei, decidem no interesse próprio, por meio do que eu chamaria de hermenêutica declaratória: tudo isso está dentro da lei porque ele, o desembargador ou o ministro, diz que está. Sua ideologia jurídica é predominantemente autoritária, o que faz do judiciário brasileiro coautor de algumas das maiores tragédias humanitárias do país, a começar pelo encarceramento em massa e pela violência policial. Não se embebeu, exceto de modo retórico, de uma cultura de direitos fundamentais que faça jus à Constituição de 1988. Sua arquitetura institucional é autocrática, com pouca transparência e avessa a controles externos. O Conselho Nacional de Justiça, aprovado por emenda constitucional em 2004, foi idealizado anos antes como uma forma de controle social sobre a organização do judiciário. A versão aprovada acabou sendo transformada em controle interno mesmo, com mínimo arejamento. Seu ganho foi instituir um controle centralizado e nacional, em vez de deixar nas mãos de tribunais estaduais. Por fim, o comportamento judicial tem se distanciado dos padrões universais mais elementares de ética judicial, sobretudo nas cortes superiores, onde assistimos a um estado de libertinagem geral. Ética judicial estabelece regras que almejem, sobretudo, a construção institucional de um valor específico: a imparcialidade. Não basta um juiz ser imparcial, é valioso que pareça imparcial. E isso se constrói com regras e cuidados de discrição, de disciplina de conflitos de interesses, de suspeição etc. É uma ética especial, aplicada a essa profissão, não a um cidadão qualquer. É o pacote que qualquer juiz precisa aceitar ao ingressar na carreira. Nossas cortes superiores não os praticam.

Não é uma visão de um copo meio vazio em vez de meio cheio. Para isso o copo teria que estar na metade. E o copo do judiciário está muito longe da metade, mesmo reconhecendo avanços institucionais e juízes que honram a melhor tradição da jurisprudência democrática.

Prestes Filho: O Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido alvo de ataques tanto da direita como da esquerda. Estes ataques desestabilizam esta importante instituição, ameaçam a sua independência?

Conrado Hübner Mendes: É muito importante distinguir coisas muito diferentes para não correr o risco de deixar tudo no mesmo saco. O STF e o judiciário em geral se construiu e se acomodou historicamente numa cultura de deferência à autoridade. O ambiente jurídico, dos fóruns às faculdades de direito, sempre foi um ambiente muito vertical e de culto à autoridade. Nos últimos 10 anos ou mais, essa deferência incondicional começou a ser problematizada e rejeitada, sobretudo por acadêmicos independentes (professores de direito que estudam judiciário com independência intelectual, e, por não litigarem nesses espaços, se sentem à vontade para fazer críticas) e também por jornalistas que, mais e mais, passaram a se especializar em judiciário. É fundamental que um judiciário maduro e democrático seja criticado, escute críticas, as processe de maneira refletida, acolha as corretas, rejeite as incorretas, e entenda que críticas são oportunidades para aperfeiçoamento institucional. Acadêmicos e jornalistas não deixam de eventualmente errar nas críticas, mas produzem material valioso sobre o judiciário. Muito diferente de críticas são os ataques e ameaças. E colocar críticas no mesmo balaio que ameaças e prestar um serviço perigoso às tentativas de intimidação e silenciamento que vemos hoje.

Ameaçar um ministro e sua família de violência, ou fazer manifestações pelo fechamento do STF e instalação de um regime autoritário, não tem nada a ver com crítica. São crimes.

Conrado Hübner sendo entrevistado no programa do Bial

Prestes Filho: Ao criticar uma decisão do Ministro do STF, Kassio Nunes Marques, você não realizou uma crítica pessoal e nem de caráter de intolerância religiosa. Por que esta perseguição implacável contra sua palavra?

Conrado Hübner Mendes: Eu fiz uma crítica ao seu desempenho como ministro, no exercício da cadeira que ocupa. Não conheço a pessoa do Kassio Nunes Marques, e não tenho nada a dizer sobre ela. Eu deploro a decisão que o ministro Nunes Marques tomou, que escancara, de modo muito agudo, algumas das patologias decisórias mais sérias do STF. Havia um caso na mesa do ministro, que lá ficou por 5 meses. O caso exigia que, em nome da liberdade religiosa, qualquer regulação dos cultos em razão da circunstância excepcional e variável da pandemia, fosse proibida. Depois de 5 meses, num sábado, véspera da Páscoa, poucas horas antes dos cultos de domingo, o ministro profere uma decisão monocrática, liberando os cultos, no pico da pandemia (com 4 mil mortes diárias). Me parece muito claro que o que definiu a gravidade dessa decisão não foi sua justificativa jurídica (bastante precária, a propósito). Foi sim o seu timing, que sonegou ao plenário qualquer chance de resposta. O plenário revogou a decisão dias mais tarde, mas o dano já estava feito. E foi irreversível. Importante dizer que publico textos críticos à atuação do STF há mais de dez anos. Alguns desses textos foram incomparavelmente mais duros e com palavras mais fortes do que essa. Já recebi respostas públicas. E elas alimentaram um bom debate.

Não foi a escolha de Nunes Marques. Ele não quis responder, quis apenas acionar a justiça sob argumento de que cometi um crime contra sua honra.

Augusto Aras, procurador-geral da República, foi indicado ao cargo pelo presidente Jair Bolsonaro. (Sérgio Lima/Poder360)

Prestes Filho: O procurador-geral da República, Augusto Aras, enviou uma representação contra sua pessoa ao Magnífico Reitor da Universidade de São Paulo (USP), pedindo uma análise de sua conduta pela Comissão de Ética desta instituição de ensino. Não seria uma intimidação? Não seria um ato para amedrontar seus colegas professores?

Conrado Hübner Mendes: Todo assédio judicial e jurídico precisa ser entendido nessas duas dimensões: a individual e a coletiva. Claro que Augusto Aras quer me intimidar, mas é claro que ele também quer intimidar e silenciar qualquer de seus críticos, que são muitos. O seu desempenho está documentado. Os jornais publicam textos com palavras fortes, às vezes sarcásticas, à sua prática colaboracionista. Mas ele resolveu processar a mim, além de um jornalista, até onde sei. A segunda observação importante é que a vitória de uma estratégia de intimidação judicial não se confunde com a vitória no processo, por meio da sentença. A vitória é conseguir, de um lado, silenciar aquele alvo específico que está sendo processado. De outro lado, silenciar a todos, que passam a ter medo de sofrer o mesmo assédio. E é natural que consiga.

Prestes Filho: Como especialista do direito, você imaginava ser alvo de processos judiciais, por conta de críticas públicas ao STF?

Conrado Hübner Mendes: Como disse, nunca acreditei que essa fosse uma possibilidade. Primeiro, porque não há ilegalidade nenhuma em criticar autoridades. Nem mesmo as críticas injustas e incorretas são ilegais. Segundo, porque ser processado não por uma autoridade qualquer, mas por aquela que tem justamente a função de proteger as liberdades, é de uma gravidade sem tamanho.

Professor Conrado Hübner ao lado do ministro Luiz Edson Fachin

Prestes Filho: Como você interpreta a judiacilazação da vida brasileira? A justiça consegue resolver as demandas ou deveríamos buscar mais diálogo, convergência de interesses e entendimento?

Conrado Hübner Mendes: Nem sempre é muito produtivo embarcar numa discussão genérica e abstrata sobre os problemas da judicialização per se. É preciso entender que um certo de judicialização é um fenômeno natural e importante nas democracias contemporâneas, que possuem constituições que promovem valores de emancipação social e individual, que pedem promoção de mudança etc. É importante ter um judiciário forte, que não seja mero coadjuvante. Dito isso, fugindo da crítica genérica e superficial à judicialização, é necessário compreender o modus brasileiro de promover a judicialização, ou seja, como o judiciário brasileiro a opera. E nisso, sem dúvida, há infinitos problemas. Alguns deles apontei acima. Não é um mal da judicialização, mas um mal da judicialização à brasileira.

Prestes Filho: Como atuante profissional, você realiza regularmente publicações de textos sobre ciência política, direito constitucional, liberdade de expressão, entre outros. Quais são os temas mais que mais atraem a sua atenção?

Conrado Hübner Mendes: Meus temas de estudo, ensino e pesquisa giram em torno do direito constitucional e ciência política em geral, mas mais especificamente sobre liberdades e autoritarismo e o papel do judiciário nas democracias. O tema da ética judicial é também importantíssimo de ser mais disseminado para que práticas antiéticas deixem de ser normalizadas no dia a dia brasileiro e que o judiciário possa prestar contas da absoluta falta de controle sobre elas.

Formatura em Edimburgo, Escócia. (Arquivo pessoal)

Prestes Filho: Sua sólida formação profissional – Doutor em Direito pela Universidade de Edimburgo (Escócia) e Doutor em Ciência Política pela USP – lhe permite ter uma ampla visão dos principais temas do direito internacional. Qual sua opinião sobre o avanço de organizações sociais e partidos políticos de extrema-direita, até mesmo neonazistas, na Europa? Existe uma ameaça concreta a liberdade?

Conrado Hübner Mendes: Acho que o avanço dos partidos de extrema direita, que começam a formar até mesmo uma espécie de “internacional extremista” são uma das ameaças mais imediatas e palpáveis das democracias contemporâneas. Protagonizam o movimento de gradual autocratização e de retrocesso democrático verificado no mundo. Mas é importante ter em mente que a democracia está profundamente ameaçada por fenômenos mais profundos. A desigualdade social e a inédita concentração de riqueza; a mudança climática, combinada com ameaças sanitárias como da pandemia; a potência das tecnologias.

Esses são alguns dos desafios que enfrentamos.

Prestes Filho: A escalada da extrema-direita na Europa pode fazer florescer partidos neonazistas brasileiros? O avanço internacional da extrema-direita está animando os setores conservadores e reacionários no Brasil?

Conrado Hübner Mendes: A resposta curta é que sim, já estamos assistindo sementes disso germinando. O alarmismo é para mim a postura ética e política mais justificável hoje em dia. Deveríamos coletivamente nos preparar para o pior e não ficarmos assistindo esses processos como reféns da história. Há muito espaço para neutralizar essas ameaças, mas é preciso envolvimento, coordenação, ação coletiva, dedicação à causa pública.

Prestes Filho: Será que não chegou o momento de realizar uma ampla reforma dos dispositivos legais que amparam a liberdade de expressão? Inclusive, rever a Lei de Segurança Nacional (LSN), assinada pelo presidente João Figueiredo, em 1983?

Conrado Hübner Mendes: Sem dúvida. Mas o problema certamente não se resume à LSN. O Código Penal, e a previsão de crimes contra a honra, tem problemas muito sérios de constitucionalidade. Mais sério ainda, é a prática casuística do judiciário brasileiro em casos de liberdade de expressão. Não temos parâmetro, não temos jurisprudência. Cada caso acaba sendo um caso, com soluções diversas mesmo quando são casos semelhantes. Não pode ser assim num estado de direito. É uma espécie de “acho que sim, acho que não” o que vemos nessas decisões.

Há um vazio jurídico.

Prestes Filho: Como professor da USP qual sua opinião sobre a situação real das universidades públicas hoje no Brasil? Existe de fato um sucateamento intencional destas instituições federais? A infraestrutura já está fragilizada? Quais são os principais desafios para os próximos anos?

Conrado Hübner Mendes: Universidades públicas (e a educação pública em geral), ao lado do SUS, são as duas maiores conquistas civilizatórias da história brasileira. Não há mínima democracia brasileira possível sem esses alicerces. Ambas conquistas estão sob profunda ameaça. A primeira, uma ameaça crônica, é a de asfixia financeira e sucateamento. É uma forma de se reprimir liberdade acadêmica sem recorrer à violência. A segunda é de estigmatização, vigilantismo, intimidação das universidades públicas. A ideia de que a universidade pública basicamente promove sexo, drogas, devassidão moral e perversão esquerdista é parte das cartilhas de implosão da democracia.

Isso ocorreu nos grandes acontecimentos autoritários do século 20 também.

Leia também: Democracia e a Perspectiva Autoritária, por Siro Darlan 

LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).


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