Por Luiz Carlos Prestes Filho

Em entrevista exclusiva para o jornal Tribuna da Imprensa Livre, a cantora lírica, Julia Félix, afirmou: “Se você consegue perceber que fazemos parte de uma estrutura formada a partir de “Raça, Gênero e Classe”, trabalhadas em obras de autoras e pesquisadoras como Ângela Davis, Djamila Ribeiro e Carla Akotirene, você entenderá porque mulheres (gênero) negras (raça) primeiramente são ocultadas, e quando se trata de um espaço elitista (classe), as coisas vão se afunilando cada vez mais”. Estudiosa do canto lírico brasileiro, Julia cita duas grandes cantoras:

“Na música no início do século XX, temos duas grandes cantoras líricas que valem a pena serem destacadas, a primeira delas é Zaíra de Oliveira (1900/1951), formada pelo Instituto Nacional de Música (1921), foi vencedora de uma competição de canto e mesmo vencendo não recebeu o prêmio, por ser negra. Outra cantora negra importantíssima dentro e fora do País, Maria d’Apparecida (1926/2017), apresentou-se no teatro municipal do Rio de Janeiro (1965) consagrada na Europa, primeira cantora negra a cantar “Carmen” na ópera de Paris, embaixadora da música brasileira na França ao lado de Baden Powell”.

Projeto Candelária participação especial junto a banda da Guarda Civil do Rio de Janeiro

Luiz Carlos Prestes Filho: Porque estudar o canto lírico a partir de sua identidade étnica e cultural? Este tema ainda foi pouco explorado no Brasil?

Julia Félix: Para mim, o canto é algo integral, e como tal, não está dissociado não apenas do corpo, mas de toda uma história desse corpo. Eu, como mulher negra, trago cantos com histórias e silenciamentos para serem entendidos e por fim, ressignificados. Ao observar pesquisas e literaturas a respeito da representatividade artística do negro neste país, nos deparamos com uma invisibilidade que, na maioria das vezes, não encontra justificativas em questões técnicas e de formação. Temos, ultimamente, tido acesso a alguns excelentes trabalhos acadêmicos voltados para este assunto, como o da pesquisadora e musicista, Antonilde Rosa, publicado na revista da USP, “Opera, raça e classe”. Na perspectiva de autores e pesquisadores negros, é apontada a presença de inúmeras musicistas negras desde o período colonial, e a negação ao reconhecimento dessa produção artística.

Prestes Filho: Durante a sua formação acadêmica quais foram as referências no canto apresentadas pelos seus mestres? Cantoras negras foram valorizadas?

Julia Félix: Minha primeira formação foi a de Bacharel em Música Sacra com ênfase em canto lírico. Tive o privilégio de conviver com excelentes professores como Stella Júnia (pianista e também professora da Escola de música da UFRJ) e, Rivelino de Aquino (primeiro professor de canto). Foi muito importante para mim a passagem por esta instituição, primeiramente, para que, como uma menina negra, criada no bairro da Penha, no Rio de Janeiro, pudesse ter acesso a música de concerto, aprender sobre a prática do canto coral, os compositores mais conhecidos dentro do repertório sacro cristão e aprender um pouco sobre minha voz.

Mas, o contato com outros repertórios e cantoras líricas negras foi mais tardio e mais fruto do meu encantamento e curiosidade com o mundo da ópera, onde encontrei minha primeira de muitas referências Jessye Norman.

Participação no Musical “Amor como revolução” no teatro Bangu Shopping. Com Henrique Vieira e Rodrigo França. Direção musical: Sulamita Lage

Prestes Filho: A indústria cultural da música brasileira ocultou as cantoras líricas negras? Você poderia citar os nomes (e estilos) das profissionais que merecem ser lembradas?

Julia Félix: Bem, essa pergunta precisa ser respondida em etapas(risos). Se você consegue perceber que fazemos parte de uma estrutura formada a partir de “Raça, Gênero e classe”, trabalhadas em obras de autoras e pesquisadoras como Ângela Davis, Djamila Ribeiro e Carla Akotirene, você entenderá porque mulheres (gênero) negras (raça) primeiramente são ocultadas, e quando se trata de um espaço elitista (classe), as coisas vão se afunilando cada vez mais. Na música no início do Séc. XX, temos duas grandes cantoras líricas que valem a pena serem destacadas, a primeira delas é Zaíra de Oliveira (1900/1951), formada pelo Instituto Nacional de Música (1921), foi vencedora de uma competição de canto e mesmo vencendo não recebeu o prêmio, por ser negra. Outra cantora negra importantíssima dentro e fora do País, Maria d`Apparecida (1926/2017), apresentou-se no teatro municipal do Rio de Janeiro (1965) consagrada na Europa, primeira cantora negra a cantar “Carmen” na ópera de Paris, embaixadora da música brasileira na França ao lado de Baden Powell. Infelizmente, pouco fala-se nessas duas grandes referências em relação a outras cantoras líricas reverenciadas da nossa música. No cenário internacional atual há diversas referências como Jeanine du bique, Pretty Yende e Angeline Blue. No Brasil, atualmente, temos as duas estrelas: Edna D’Oliveira e Edinéia de Oliveira.

Prestes Filho: Na MPB as cantoras negras tem destaque. Porque no canto lírico a realidade é outra?

Julia Félix: Eu penso que a música popular brasileira é formada de um espaço mais democrático, mas, que ainda luta com a questão do legado da figura do artista negro, como é o caso da pouca referência a Jonnhy Alf, no caso da Bossa Nova, e pouca visibilidade de compositores e artistas negros no cenário da música na Bahia, por exemplo. Mas, sim, quanto mais elitista o espaço, menos artistas negros estarão ocupando o mesmo, por várias questões, inclusive, sociais.

Gravação da Missa Afro-brasileira de Carlos Alberto Pinto da Fonseca, Coro Sacravox (UFRJ)

Prestes Filho: Na sua opinião, como essa situação pode ser corrigida futuramente?

Julia Félix: Na verdade, essa reparação já começou antes de nós, com pessoas que lutaram pela democracia, por políticas públicas que favoreciam os que mais precisavam e por movimentos de reparação histórica. Penso que devemos continuar através de educação, representatividade e democratização do acesso aos espaços culturais. Existe uma palavra de origem africana, que se adequa perfeitamente ao meu ver, a construção de um futuro numa perspectiva mais igualitária: “Ubuntu”, que tem como significado: ”Sou o que sou pelo que nós somos”. Um grupo artístico, seja ele qual for, deve ter o mínimo de consciência política, e isso não se faz olhando apenas para o próprio setor, mas para todo o seu entorno. Da mesma forma, não se faz, vislumbrando apenas um futuro sem entender quais questões do passado nos trouxeram até aqui.

Prestes Filho: Você pessoalmente já experimentou preconceito em relação ao seu trabalho profissional?

Julia Félix: É interessante que quando pensamos preconceito, tendemos a visualizar uma situação explícita de racismo, mas, no meu caso, atribuo a isso a toda uma falta de estrutura que muitas vezes, faz com que as cantoras negras líricas brasileiras cheguem mais tarde a ter acesso aos espaços de destaque no canto lírico, quando chegam. Todo esse processo passa por diversos “receios internos” a respeito da capacidade de ocupar este lugar, mesmo sabendo da possibilidade.

Já rejeitei alguns trabalhos com base nessa “síndrome da impostora”.

Julia Félix e o Barítono Rafael Siano, ópera “Così fan tutte” (crédito: Luiz Felipe Sá)

Prestes Filho: Existem óperas, operetas e repertório lírico que podem ser valorizados por cantoras negras? Quais autores você destacaria?

Julia Félix: Ultimamente tenho tido contato (até pelo foco de minha pesquisa de conclusão de curso e trabalhos coletivos) com compositoras negras estadunidenses como Margaret Bonds e Florence Price; mulheres notáveis que ocuparam grande destaque na música clássica, sendo a última delas a primeira mulher negra a ter uma música executada por uma orquestra sinfônica.

Prestes Filho: A ópera “O Alabê de Jerusalém” do compositor Altay Veloso é uma referência?

Julia Félix: A obra “Alabê de Jerusalém” é um presente para minha geração de artistas negros, contemporâneos ao compositor da obra, Altay Veloso. Para mim, apreciar uma ópera que trata de uma narrativa que se passa nos tempos de Jesus de Nazaré, feita para um personagem negro e com participação expressiva dos grandes nomes da música como a grande Zezé Motta, dentre outros, é certamente uma referência. A obra nos ajuda a ver também que os textos de obras sacras, não precisam ser de domínio de apenas uma confissão religiosa. Muita gente ainda confunde música sacra diretamente a “música de uma determinada igreja”, e não necessariamente há relação entre uma coisa e a outra.

Outro grande legado desta obra é atravessar musicalmente e culturalmente “criar um diálogo” entre as tradições africanas, judaicas e cristãs. Realmente um trabalho notável.

Sala Cecília Meireles participação especial com a Banda da Guarda Civil do Rio de Janeiro

Prestes Filho: Como aconteceu a música para você? Família? Vocação? Paixão? Tradição?

Julia Félix: Bem, essa é uma daquelas respostas que a gente descobre que não tem começo e nem fim(risos). Eu sempre fui muito cercada por música. Meu pai, pastor de igreja Batista, gostava de Nat King Cole e seleções de hinos americanos e grupos cristãos da década de 1980. Minha mãe, embora professora de alfabetização, tinha uma linda voz, e uma vontade de tocar piano. Próximo ao meu nascimento, em 1983, ela chegou a se matricular no Conservatório Brasileiro de Música (instituição onde faço minha licenciatura atualmente). Minha irmã e meu irmão sempre foram envolvidos com música. Eu cresci entre os sons da igreja e as melodias de música popular que escutávamos no bairro da Penha (RJ). Mas, mesmo se eu não tivesse essas memórias e referências eu tendo a pensar que cantar transcende a tudo isso. Primeiro, porque eu sou muito feliz quando eu canto. Seguindo isso, você escolhe cantar a despeito de tudo. Independente de qualquer exigência, interna ou externa. Tem muito aprendizado, muito trabalho, aprimoramento, mas, muito prazer e um fluxo de algo que é maior do que eu, um lugar onde eu posso ser eu mesma.

Prestes Filho: Cite os compositores brasileiros que gostaria de cantar. Quais são aquelas personagens de óperas que atraem a sua força inventiva? Claro, compositores vivos.

Julia Félix: Comecemos pelos personagens… (risos). Eu, particularmente, gosto de óperas, com heroínas que tenham dilemas profundos a respeito da própria expressividade e liberdade, inclusive sexual como mulheres. A primeira ópera que fiz foi uma oportunidade dada pela Marina Considera e o Núcleo de Ópera do Rio de Janeiro (NUOVO), onde interpretei num exercício cênico no Casa das Artes de Laranjeiras (CAL) uma das irmãs em “Cosi fan Tutte” de Mozart. Tenho também admiração pela cortesã Violetta de “La traviatta” de Verdi. No cenário brasileiro, sou apaixonada pela obra do nosso amazonense Claudio Santoro. Um compositor contemporâneo que assisti ultimamente foi João Guilherme Ripper (Ópera “Piedade”).

Prestes Filho: A música popular está entre os seus interesses. Você gosta de visitar diferentes gêneros?

Julia Félix: Ah, sim! A música brasileira é parte da minha trajetória de aprendiz. Sempre me aproximei muito dos compositores populares que considero patrimônios da nossa música como: Cartola, Silas de Oliveira, Baden Powell, Chico Buarque, Paulo César Pinheiro, Djavan, Dona Ivone Lara, dentre outros.


LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).