Por Jorge Folena

A proposta legislativa, incentivadas pelos presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e pelo governo de Jair Bolsonaro, para que empresas privadas possam comprar vacinas para imunização dos seus empregados contra a COVID-19, é mais um atentado à Constituição brasileira.

Na verdade, muitos dos empresários que se dizem preocupados com o gravíssimo estado de calamidade sanitária em que está mergulhado o país, apoiam o ocupante da Presidência da República e estão entre os que defenderam, desde março de 2020, que nenhuma medida de isolamento social fosse adotada de forma séria, porque entendiam que as atividades econômicas deveriam prosseguir, sem nenhuma preocupação com os trabalhadores, que precisam se deslocar em meios de transportes coletivos lotados e sem condições sanitárias adequadas e que tiveram seus vencimentos reduzidos para não serem despedidos.

Muitos destes empresários, que querem garantir a vacina para eles e seus familiares, exigiram as drásticas reformas trabalhistas, promovidas por Michel Temer, e a previdenciária, imposta pelo governo Bolsonaro, que inclusive deseja declaradamente extinguir com o serviço público, por meio de uma duríssima reforma administrativa contra os servidores.

Na verdade, estes empresários (que contam com um forte lobby no parlamento para aprovar suas iniciativas) não estão preocupados com os seus empregados nem com o conjunto de trabalhadores e trabalhadoras, e muito menos com os pobres e desvalidos do país. Eles estão pensando somente em si, no seu interesse e instinto de sobrevivência, diante de uma pandemia que mata aos milhares no Brasil, tendo inclusive ceifado a vida de alguns ricos.

É certo que os empresários sequer vão pagar pelas vacinas que venham a comprar, pois a grande maioria irá deduzir como despesas operacionais, no Imposto de Renda das suas empresas, as compras por elas realizadas, que poderão ser consideradas “necessárias à atividade da empresa”, pois supostamente serão aplicadas nos empregados para garantir o funcionamento do empreendimento.

Assim, mesmo que a Câmara dos Deputados tenha retirado do texto a isenção tributária que constava no PL 948 (de autoria do deputado Hildo Rocha, do MDB/MA), quem irá pagar, na verdade, pelo privilégio de uns poucos, serão os trabalhadores e a população pobre, uma vez que o valor desembolsado poderá ser deduzido da arrecadação tributária, que deveria ingressar no Erário Público.

Não há empresário bonzinho nesta estória!

Mais do que nunca, o momento dramático que vive o país exige responsabilidade, igualdade, justiça e solidariedade de todos os brasileiros, sem distinção e privilégios de classe social ou econômica, como preconiza a Constituição, cujos objetivos visam assegurar a todos os brasileiros o direito fundamental à dignidade da pessoa humana (princípio fundamental da República Federativa do Brasil).

Nesse passo, no grave estado de crise sanitária em que estamos mergulhados (em grande parte por incompetência exclusiva do governo federal), não há base constitucional para justificar que uns tenham acesso à vacina antes de todos, nas mesmas condições de faixa etária e estado de saúde. Menos ainda se pode aceitar que o Estado brasileiro permita que isto ocorra, como se fosse mera atividade comercial, na qual o Estado não tenha a obrigação de intervir.

A Constituição estabelece que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.”

Como se pode inferir pela letra da nossa Carta Política, o direito fundamental e humano à saúde é dever do Estado e a Constituição garante o “acesso universal e igualitário para as ações e serviços para a sua (…) proteção”.

Ademais, a quantidade de vacinas disponíveis em relação ao número de pessoas ainda está muito abaixo das necessidades de toda a coletividade. Desta forma, não é razoável nem proporcional que o Estado permita que empresas adquiram vacinas para uso privado dos seus donos, familiares e empregados, sem respeitar a universalidade e a igualdade, para que possam se prevenir em relação aos demais brasileiros, muitos dos quais necessitam de atendimento prioritário em razão de serem portadores de doenças crônicas e com idade avançada; trata-se de medida inaceitável, ainda mais, frise-se, durante o estado de calamidade sanitária em que nos encontramos.

Infelizmente, o projeto aprovado na Câmara do Deputados e encaminhado ao Senado Federal incentiva e fomenta o egoísmo, que não encontra respaldo na Constituição brasileira, que entre os seus objetivos fundamentais veda toda e qualquer forma de “marginalização”.

Sendo assim, a compra de vacinas por empresas privadas, para uso exclusivo dos seus sócios e empregados, é a imposição de discriminação e marginalização dos demais brasileiros, que não poderão ter acesso à imunização, de acordo com os critérios de universalização e igualdade de condições, estabelecidos para a proteção do direito humano à saúde, que é de todos!

Por tais razões, entendo que é inconstitucional o malfadado projeto de lei, que somente semeará mais desigualdade na sociedade brasileira, no momento em que deveríamos contar com a união e solidariedade de todos e para todos, como determina a Constituição.


JORGE FOLENA – Advogado e Cientista Político; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros e integra a coordenação do Movimento SOS Brasil Soberano/Senge-RJ. É colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre, dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.