Por Ricardo Cravo Albin

Esta vida de escritor a pesquisar por décadas a nunca acabarem o que de fato vale a pena em nossa música popular pode conduzir a caminhos decepcionantes, não fosse a nossa memória coletiva no mais das vezes ausente, ou até cega, para aferir valores de referências e de historicidade. Ou, ao contrário, pode surpreender com o aparecimento de pérolas inesperadas e de fato a serem abrigadas. E compartilhadas com um maior número de estudiosos. É precisamente este texto que o leitor tem às mãos. Para mim em especial, com repercussões inesperadas em meu coração de entranhamentos tão apaixonantes pela mais bela cidade de pequeno porte do Brasil, a Penedo de minha família materna e de meus encantos infantis, a Penedo cujo centro memorial – a Casa do Penedo – foi arrebatadoramente imaginada e construída pelo meu melhor amigo de infância, o mais tarde renomado médico Francisco Salles, logo transformado em memorialista número um da cidade fundada por Maurício de Nassau. Salles foi igualmente agudo indagador de tudo que tivesse alimentado as vísceras históricas ou literárias de Penedo. Consolidadas todas elas através dos tantos séculos lambidos dia e noite pelo Velho Chico, o que a fez permanecer presença luminosa em um país quase nunca atento às grandezas que o põem de pé.

Chico Salles levantou sempre a necessidade de defender a cidade de eventuais maus tratos e modernices suspeitas, como também a obrigação de lhe realçar alguns feitos produzidos por até inesperados filhos relevantes.

O caso preciso deste “Dicionário Musical”, pesquisado, e diria até milagrosamente antecipado, por nome que só agora será reconhecido, o talvez pioneiríssimo musicólogo da literatura da MPB, o enciclopedista Isaac Newton de Barros Leite, cuja obra rara acabou por incendiar o olhar atento do homem de cultura Jean Lengi, atual diretor da Fundação Casa do Penedo, de quem recebi o convite para prefaciar o “Dicionário Musical”, publicado no Rio de Janeiro em 1908 (2ª edição, já que a primeira data de 1904, editada em Maceió pela Tipographia Commercial.

Isaac Newton (1857-1907) foi professor de piano e hábil consertador, além de afinador célebre desse instrumento. Em fragmentos incompletos – como já eu esperava – sua biografia realça singular acontecimento que cabe perfilar. Treze dias antes da sua morte em Maceió, aos 56 anos de idade, concluiria a fabricação de um piano inteiramente construído com medidas das matas alagoanas. O calendário indicava o dia 19 de setembro de 1907, e a imprensa da capital alagoana celebrava o feito como um “trabalho de grande apuro, bem-acabado e no qual seu autor imprimiu a mais correta perfeição.” O público de Maceió teria até feito fila para adentrar o atelier do artista e ver o piano alagoano, a Rua do Livramento, 16. O destino que mereceu esse piano? Quero pesquisar desde este momento e encareço a eventuais leitores que me forneçam algumas pistas. Valeria certamente a pena instalá-lo, se ainda existe, na Casa do Penedo, agora ao lado da nova edição de 2022 do seu antológico Dicionário Musical.

A Tipographia Commercial de Maceió realizou a raríssima impressão do Dicionário abrigando todas as abreviações, expressões, frases, vocábulos, sua techinologia, a par da nomenclatura dos instrumentos musicais desde sua mais remota antiguidade”. A volumosa obra (313 páginas) foi dedicada ao então governador do Estado Joaquim Paulo Vieira Malta. O Dicionário de Isaac Newton foi algumas vezes citado em obras brasileiras de musicologia, mas nunca teria sido objeto de justa consideração como extraordinário esforço pioneiro de lexicologia, que de fato é. De pouco valeria a frase com que Isaac abre seu prefácio: “Contando apenas com a pouquidade de nossos recursos, empreendemos essa obra, a fim de acolher os 4000 vocábulos de que aproximadamente conta ele. Este trabalho representa o fruto do esforço ingente de longos anos de perseverante estudo, inabalável resolução e decidida força de vontade. No meio acanhado em que vivemos e no qual a Arte definha, à míngua de escola e estímulos, talvez encontremos óbices que possam influir para o bom acolhimento d’este Dicionário. Entretanto só ao público indulgente cabe agora fadar o nosso trabalho, tendo em vista que o empreendemos contando apenas com nossa fraca mentalidade e com a complacência dos entendidos, de quem esperamos a reparação para os senões n’êlle encontrados.”

O autor considerava o seu Dicionário como uma compilação, “na sua maioria de textos em língua estranha, que nem todos conhecem.” Em português, apenas conhecia o de Rafael Coelho Machado que era segundo ele deficiente e lacunoso em tecnologia musical. Isaac conclui sua catilinária de modéstias afirmando que “nada inovamos, procuramos apenas aumentar o nosso trabalho, dando a conhecer alguns termos modernamente criados para expressar canções pátrias e instrumentos hoje muito usados, mas ainda desconhecidos na história da música moderna.”

Certamente que o penedense pioneiro incidiu em seus arroubos de modéstia em injustiça contra seu histórico trabalho. Até porque vários de seus conceitos apontam apurado conhecimento da cultura música tradicional, superando até mesmo obras publicadas posteriormente à sua. Alguns verbetes antecipam histórias que se cristalizariam no futuro e são de extraordinário interesse, como o Chorinho – “espécie de toada musical ao som da qual dançam o landu ou lundu. É também o nome de uma das variedades de “danças a que chamam samba.” Mais curioso e testemunhal, impossível.

Outro verbete, entre dezenas a merecerem cuidados e atenção, é o referente ao Maxixe – “nome chulo impropriamente criado pela populaça para designar a dança de uma Polca-Tango que prima pelo característico de meneios e requebros indecentemente exibidos pelos dançantes, especialmente em bailados públicos carnavalescos. Esta dança moderna, um pouco mais modificada, já vae sendo introduzida até mesmo nos salões da melhor sociedade.” Este verbete pode gerar todo um apoio histórico de definições de época e de comportamento. Inclusive como sentimentos de opinião sobre “requebros indecentemente exibidos pelos dançantes” ou “nome chulo impropriamente criado pela populaça.” A par de exibir também opiniões, reflete valiosa crônica de época, todo um contexto factual do comecinho do século XX.

Portanto, e por tudo, este Dicionário Musical é obra sem paralelos na aferição do que existia e como era vista a confluência da música do povo nos primeiros anos do decisivo século XX, que estabeleceria a fixação do gênero musical mais celebrado pelo mundo, o samba do Brasil. E de seus criadores miscigenados.

Grande novidade para a história da MPB – JP Revistas

RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

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