Por Carlos Mariano

Assisti, no fim de semana entre o Natal e o Ano-Novo, o documentário, em exibição na gigante dos provedores de filmes e séries por streaming Netflix, “Emicida: AmarElo – É tudo pra ontem”. Emicida é um dos artistas negros mais talentosos da atualidade, aliás um dos artistas brasileiros mais importantes de sua geração. Apesar de eu não ser um conhecedor profundo e seguidor de suas obras artísticas, o fato dele ser um rapper negro que por meio da sua arte se propõe a debater os problemas sociais da periferia paulistana, de onde ele é oriundo, já me faz olhá-lo com profundo respeito e admiração. Emicida influencia, com sua música e narrativa negra, milhares de jovens das favelas e periferias do Brasil. É daí que eu quero começar as minhas considerações sobre o seu documentário.

Como ícone pop da juventude negra, a fala de Emicida fatalmente teve, tem e terá uma repercussão muito grande na comunidade negra. Partindo desse princípio, aprofundo-me aqui na narrativa usada por ele na obra, construída a partir de um inventário auspicioso da historiografia da negritude brasileira. Ele vai de Abdias do Nascimento a Wilson Simonal, passando por Lélia Gonzales e Ruth de Souza. Mas desde o início até o fim do documentário, Emicida deixa claro que todos esses personagens da luta negra não estão ali para incentivar a continuidade de uma luta de classes contra a sociedade de mercado, que é a causadora de milhares de negros e negras viveram às margens da sociedade e, inclusive, muitas vezes não conseguem ser sujeitos da sua própria história. Esses ícones servem à estética política do artista que propõe um encontro de classes. Encontro esse que tem no mito da democracia racial seu grande mote ideológico.

O rapper reforça no seu documentário aquela história que é mais de que satisfatório para o jovem negro da periferia se contentar em ver sua cultura ser diluída numa ideologia de classe mais urgente: a ideologia da democracia liberal burguesa. Nessa ideologia o negro e sua cultura aparecem como colaboradores da nossa brasilidade, e não sujeitos construtores dessa mesma cultura. Entendo a necessidade do diálogo negro com parte da sociedade que é solidária à causa, inclusive incluo, óbvio, o branco antirracista. Mas, nós – negros –, não podemos ser ingênuos de pensar que todos os negros e negras vão ter o mesmo “sucesso” na sociedade de mercado como rappers, jogadores de futebol ou as escolas de samba. Se quisermos pensar numa libertação do negro no Brasil precisamos questionar a sociedade capitalista de consumo e seu Estado Liberal Político, pois são eles que produzem essa sociedade dividida por classes, no qual o negro é o mais excluído e desvalorizado. Assim, a sua ascensão só é vislumbrada se for pela regra da meritocracia, concessão ou da “sorte”.

Na sua estética política, AmarElo coloca Emicida como um messias negro que vem com seu Neosamba, ser uma espécie de “líder negro” que traz uma nova consciência para um “novo Rap”, conciliador de classe, liquidificador de ritmos (junta MPB, samba…) e faz menos cara de mau.

No exato momento que o movimento negro se vê aviltado com o “sequestro” da Fundação Palmares, símbolo da luta e preservação da memória negra do Brasil, por Sérgio Camargo, sujeito que tem vergonha de ser negro e junto com o bolsonarismo pratica uma política de combate ao movimento negro, vejo ser contraditório, um dos mais populares e talentosos artistas negros brasileiros da atualidade negar a luta de classe numa reflexão sobre existência negra na sociedade brasileira.

Numa das reflexões mais emblemática do documentário, Emicida prega que o negro deve se inspirar nos sambistas e ir ao encontro do outro. Tal observação me parece um pouco ingênua. É claro que o negro sambista optou, sim, não só pela busca do outro, mas, mais do que isso: a história do samba nos mostra – indo por reflexão mais problematizada e menos idealista – que o encontro do samba com a sociedade excludente e suas esferas de poder, foi sempre uma luta por hegemonia cultural a ser alcançada pelo negro. E essa luta, tem até hoje avanços e recuos estratégicos no sentido de reconhecer a cultura negra como formadora da nossa identidade de ser brasileiro. O samba antes de ser brasileiro é negro.

Por muito tempo, boa parte do mundo do samba se conformou com um discurso encantador, reconciliador e ecumênico do mito da democracia racial. Contudo, a experiência nefasta da vitória da ideologia racista do bolsonarismo em 2018, mostra-nos como o mito da democracia racial provou historicamente ser extremamente frágil e volátil no combate ao racismo. Paradoxalmente, tornou-se uma alimentadora do mesmo racismo de sempre.

Portanto, quando eu vejo um jovem negro, líder e artista consagrado acreditando ainda no mito da democracia racial, isso me deixa cismado com a eficácia da mensagem passada para o movimento negro do discurso messiânico libertador do Emicida.

Emicida gosta de um ditado que usou como mantra no seu documentário: “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra hoje”. Ao analisar a atual conjuntura do país na luta antirracista e antibolsonarista, vou parafrasear está reflexão dizendo que, hoje, nós precisamos mais do machado de justiça de Xangô do que da pedra de Exu.


CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.