Por Luiz Carlos Prestes Filho –
Em entrevista exclusiva para o jornal Tribuna da Imprensa Livre, o produtor cultural, poeta e músico, Adailton Medeiros, relembra quando liderou o movimento para denominar a Lona Cultural de Anchieta com o nome do artista e compositor, Carlos Zéfiro: “O show de inauguração da Lona foi com a Marisa Monte e a Velha Guarda da Portela, quando ela cantou duas músicas do Alcides, o Zéfiro, acompanhada de pé pela plateia e toda a família dele, que ocupava a primeira fileira das cadeiras. O conceito e a imagem dele mudaram positivamente, passaram a enxergá-lo artisticamente e entender a sua importância para a cultura brasileira.” Quando pergunto sobre apropriação do nome e obra de Zéfiro, que sempre residiu no bairro de Anchieta, pela elite cultural da zona sul, Adailton responde:
“Zéfiro virou cult.“
Luiz Carlos Prestes Filho: Qual a diferença existente entre a produção cultural da periferia da cidade do Rio de Janeiro e da zona sul?
Adailton Medeiros: A principal diferença é que a Zona Sul sustenta uma cultura hegemônica e nós não. Hoje a nossa maior disputa é pela hegemonia da cidade. A nossa sociedade foi construída de forma a valorizar a propriedade e o poder de consumo e nesse aspecto estamos anos luz atrasados. O subúrbio ficou invisibilizado por muitos anos por conta da polarização asfalto/morro, zona sul/favela. A partir da década de 1990 que começam a surgir projetos socioculturais afirmativos, tendo como protagonistas as lideranças locais, que os criaram para um público do próprio território, no sentido de realizar e consumir, ou seja, o despertar do desejo de pertencimento, de garantia da sua legitimidade. Mas volto a dizer, produzimos cultura. Mas a ideia de nos tornarmos e vivermos como cineastas, bailarinos, músicos, artistas plásticos ainda é muito embrionária.
Produzimos cultura, mas não arte, como aquela reconhecida, produzida e consumida na zona sul.
Prestes Filho: Quais são os ícones culturais de Guadalupe e Anchieta, Ricardo de Albuquerque e Pavuna?
Adailton Medeiros: De Guadalupe o Profeta Gentileza, sua família ainda mora lá. Poderia citar o Caetano Veloso, que durante a juventude morou lá, tanto que a Lona Cultural de Guadalupe foi batizada com o título de uma de suas canções: “Terra”. De Anchieta, sem dúvida, Carlos Zéfiro, o famoso desenhista pornográfico dos anos 50 e 60, que dá nome a Lona Cultural do Bairro. Mas tem também o Lafayette, que nas décadas de 70 e 80 fez muito sucesso com o “Lafaiete e Seu Conjunto”. Sua discografia é enorme, tocou e fez arranjos para os maiores cantores da época.
De Ricardo considero o Eros Fidelis, um cantor e compositor que já foi gravado por Alcione, Jorge Aragão e muitos outros. Da Pavuna, a irreverente e corajosa, Jovelina Pérola Negra, uma das musas do samba que herdou o estilo da Clementina de Jesus.
Prestes Filho: O artista e compositor Carlos Zéfiro teve destaque na produção cultural de seu tempo?
Adailton Medeiros: Para mim, no Brasil, o Zéfiro é o criador da “Estética do Prazer Libertário”. Zéfiro era o desenhista e roteirista dos famosos “Catecismos”, uma revistinha de 16 páginas, no formato daquela cartilha das aulas de catecismo. Só que seus desenhos eram carregados de cenas de sexo apimentadas, com um diálogos curtos e eram vendidos nas bancas de jornais clandestinamente. Zéfiro influenciou na formação sexual de várias gerações. Quando digo que é o criador da “Estética do Prazer Libertário” é porque na época as mulheres eram muito reprimidas, e ainda são, mas eram muito mais. Geralmente, não recebiam informações sexuais antes do matrimônio, casavam para procriar praticando no máximo o “papai e mamãe”. Nas revistinhas de sacanagem do Zéfiro as mulheres também sentiam prazer, ficavam molhadas, transavam em todas as poses e formas, do oral ao anal e gozavam uma, duas, três, enfim, várias vezes, ou seja, sentir prazer e ter liberdade para senti-lo não era privilégio só dos homens, mas também e, principalmente, das mulheres.
Prestes Filho: A obra de Carlos Zéfiro é prova viva de que ocorreram profundas mudanças nos costumes e tradições brasileiras?
Adailton Medeiros: Com certeza e o maior exemplo está na sua própria família. Quando o Zéfiro morreu sua família queimou a maioria dos seus originais. Restaram poucos. Tomaram essa atitude por vergonha. De repente a Marisa Monte grava um CD chamado Barulhinho Bom, com encarte do Gringo Cardia baseado nos traços do Zéfiro. A gente ganha a confiança da família e prestamos uma homenagem a esse artista dando seu nome ao principal equipamento cultural do bairro de Anchieta, a Lona Cultural Carlos Zéfiro. Convidamos a Mariza Monte para ser a madrinha da Lona e o Juca Kfouri para ser o padrinho, pois foi ele que revelou a verdadeira identidade de Zéfiro para o Brasil, através de uma reportagem de três páginas, na revista Playboy, onde era também editor.
Ali o Brasil descobre que o Zéfiro, que além de todo o seu legado pornográfico, era um simples funcionário público chamado Alcides Caminha que, nas horas vagas, também era compositor. Parceiro de Guilherme de Brito e Nelson Cavaquinho, autor de uma das letras mais bonitas da música brasileira: “Tire o seu sorriso do caminho / que eu quero passar com a minha dor” – a canção “A flor e o espinho”. O show de inauguração da Lona foi com a Marisa e a Velha Guarda da Portela, quando ela cantou duas músicas do Alcides, o Zéfiro, uma delas a “Flor e o Espinho”, acompanhada de pé pela plateia e toda a família dele, que ocupava a primeira fileira das cadeiras. Para encurtar, o conceito e a imagem dele mudou positivamente, passaram a enxergá-lo artisticamente e entender a sua importância para a cultura brasileira.
Foi da vergonha ao orgulho, coroado com o casamento de uma de suas netas na sua casa, na Lona Cultural Carlos Zéfiro.
Prestes Filho: Como Carlos Zéfiro inspirou a sua atuação de produtor cultural? Influenciou suas produção musical?
Adailton Medeiros: Inspirou muito, senti que resgatar a sua história e valorizar seu território, meu também, tornou-se parte da minha missão de vida. Minha música e poesia, acredito que não sofreu sua influência. Para falar a verdade nunca me atentei para isso. Agora vou ter que rever.
Prestes Filho: É emblemático e contraditório a existência da Lona Cultural Carlos Zéfiro num bairro como Anchieta? Entre igrejas e templos da localidade o destaque para o nome deste artista valoriza a identidade de Anchieta?
Adailton Medeiros: Sim, o subúrbio sempre foi muito conservador e além disso estávamos passando por uma guinada grande no que diz respeito à política. A religião já estava infiltrada por completo, em especial os neopentecostais, e se fortalecia cada vez mais dentro dos gabinetes e fora deles, a cada dia pipocava uma nova igreja, seja numa garagem desocupada ou em espaços improvisados. A minha atitude de ir atrás do Juca Kfouri foi até por causa disso. Ninguém acreditava que levantaríamos uma Lona Cultural em Anchieta. Do inicio do movimento ao início da obra passaram-se 5 anos. A Região Administrativa (RA) era comandada por religiosos e eles quando viram que a obra da Lona estava quase toda pronta plantaram uma matéria no jornal “O Dia” de meia página, onde o repórter perguntava as pessoas o que elas achavam do nome da Lona e, acredito que a maioria não sabia quem era Carlos Zéfiro. O foca, provavelmente, o entregava como desenhista pornográfico. Tem uma fala de uma pessoa na matéria que não me esqueço, ela é mais ou menos assim: “… tanto nome de político bom pra botar na Lona vão botar logo o desse pervertido”. Ou seja, foi tão difícil que fizeram um movimento pra mudar o nome, o que não conseguiram. Também, queriam tirar o grupo que eu liderava da administração da Lona. O que ocorreu dois anos após a sua inauguração. Quanto ao nome valorizar a identidade de Anchieta, vamos lá: a maior referência geográfica de Anchieta é justamente a Lona, por consequência é o nome mais citado diariamente para qualquer informação.
Por outro lado, só consegui convencer a Marisa e o Juca a serem os padrinhos do projeto por causa do seu nome. Anchieta nunca viu tanto carro de imprensa quanto no dia da coletiva da Marisa e da Velha Guarda da Portela. Com isso Anchieta se descola das páginas policiais de jornais e revistas e ganha os espaços nobres nos cadernos de cultura, programas televisivos e radiofônicos. Por causa desse nome consegui trazer os mais respeitados cineastas, diretores de teatro, cantores, compositores e, como consequência natural, trazer público de outras localidades. Provocando uma maior mobilidade na cidade e uma interação riquíssima na plateia com quem era daqui e quem era de fora, de forma que o Zéfiro passou tanto a ser venerado a ponto de no carnaval de 2000 tornar-se enredo do “Bloco do Boi”, a maior manifestação cultural local.
Nesse ano o Bloco chegou a arrastar mais de 5 mil foliões.
Prestes Filho: Carlos Zéfiro residiu a vida inteira na periferia. A apropriação de seu nome e obra, que hoje é feita pela elite cultural da zona sul, demonstra a sua força? Prova a sua capacidade de derrubar fronteiras sociais e econômicas?
Adailton Medeiros: Quanto a primeira pergunta, sim. Zéfiro virou cult. Tanto que a Banca Cena Muda, de Ipanema, resolveu durante um tempo reeditar as revistinhas do Zéfiro e eu emprestei vários originais à Adda, dona da banca. Ela não queria dinheiro, queria é que todo mundo se apropriasse do Zéfiro. Quanto à segunda, o seguinte eu sempre tive um olhar sobre Zéfiro como passado, como história eu jamais pensei que pudesse imaginá-lo no presente e num futuro próximo.
Creio que na era Damares (atual titular do Ministério Mulher, Família e dos Direitos Humanos) Zéfiro nunca foi tão importante. Lá atrás sim, serviu como quebra de fronteiras; hoje diríamos, de paradigmas.
Prestes Filho: Quem são os artistas que hoje se destacam no cenário cultural de Anchieta, Guadalupe, Ricardo de Albuquerque e Pavuna? Algum destes tem relação com a identidade “zeferiana”?
Adailton Medeiros: Como disse lá no início, aqui ainda não temos o que poderíamos chamar de famosos, no máximo são notáveis, e nesse caso eu também me incluo. Nós ainda estamos no processo de construção e preparação. É importante saber que aqui ainda se tem a prática de ter que trabalhar ou servir o exército quando se completa 18 anos. Não conseguimos formar ainda uma geração de artistas que dê origem a uma subsequente e a apoie. Para muitos, a arte é ainda coisa de vagabundo. Basta você ver que os maiores defensores do Jair Bolsonaro, no Rio, estão aqui. Entendem a Lei Rouanet “como ninguém” e se orgulham em dizer que acabaram como a nossa mamata. São incapazes de reconhecer que somos iguais ou pelo menos muito parecidos. Para se ter uma ideia, quando surgiu esse movimento na década de 90, o principal objetivo era o de não perder a juventude para o tráfico e nem para o submundo da marginalidade. Na maioria dos casos fomos exitosos; porém, perdemos muitos talentos para o Mc Donald, Bob’s, Supermercados e Casas Bahia da vida e outros que só aumentam e retroalimentam à margem, com o argumento da dignidade de um emprego a qualquer custo e sacrifício.
Quando dignidade é muito mais que isso.
Prestes Filho: Quais equipamentos culturais estão a disposição da população local? O maior deles seria a quadra do GRES Beija-Flor de Nilópolis, localizado no município vizinho?
Adailton Medeiros: Sim, porém mais nas proximidades do carnaval. Lá são realizados alguns shows. Tirando isso temos a Lona “Jovelina Pérola Negra”, e a quadra da Unidos da Ponte, na Pavuna; as quadras do “Arame” e do Império Ricardense, em Ricardo; a Lona “Carlos Zéfiro” em Anchieta e o “Esporte Clube Anchieta”; a Lona “Terra”, em Guadalupe, o cinema no Shopping Jardim Guadalupe e o Ponto Cine, no Guadalupe Shopping, o maior exibidor de filmes brasileiros no mundo. São poucos os equipamentos, pouquíssimos e não há um interesse do poder público e nem da sociedade, de uma forma geral, de promover conhecimento e bem-estar social.
Em todos os lugares onde dou palestras costumo fazer paralelo com Euclides da Cunha, o cara que escreveu o primeiro livro determinista do Brasil, “Os Sertões”. No livro, Euclides abre a narrativa assim: “O sertanejo é antes de tudo um forte”. Eu costumo dizer: “O suburbano é antes de tudo um chato”. E a maior prova disso é um cara chamado Claudio Prado, que criou e construiu o Museu da Humanidade, em Anchieta, onde são guardados mais de 90 mil itens arqueológicos, entre estátuas, vidros, joias, armas, tecidos, roupas, objetos em metais, madeira e pedra, entre muitos outros, do Brasil e do mundo. Tudo aqui é na cara e na coragem.
Claudio Prado é um dos meus ídolos e mora pertinho; é um dos meus mestres, e é mais novo que eu. O Claudio simboliza muito a nossa missão, o nosso comprometimento com a “nossa terra de índio, onde nascem nossos filhos e estão enterrados nossos ancestrais”
***
Segue o link do filme “Em Busca de Carlos Zéfiro“, de Silvio Tendler – (Documentário • RJ • Brasil • 2020 • 90 min)
https://tamandua.tv.br/filme/default.aspx?name=em_busca_de_carlos_zefiro
ABI Cineclube debateu o filme de Silvio Tendler:
LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).
MAZOLA
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