Por Carlos Mariano

Cultura negra é tema da maioria das escolas do grupo especial para 2021.

Previsto para acontecer em 2021 fora do calendário carnavalesco, no mês de julho, devido à crise da pandemia da covid-19, os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro já começam a ser pensados por boa parte das agremiações. Com exceção da Estação Primeira de Mangueira, que ainda não escolheu seu enredo, as outras 11 agremiações do chamado grupo Especial já definiram quais serão os seus temas. E o que me chama a atenção é que sete escolas do grupo especial, mais do que a metade, definiram que o tema dos seus enredos será a cultura negra.

Isso é um dado interessante, pois desde o começo do novo milênio as escolas do grupo Especial do Rio de Janeiro, em sua grande maioria, foram abandonando os temas negros. Em seu lugar, trouxeram para a avenida conteúdos com a perspectiva do marketing e do lucro financeiro. Foi assim que, nas duas primeiras décadas dos anos 2000, presenciamos enredos homenageando personalidades artísticas sem nenhum vínculo com o samba: Silvio Santos, Xuxa, Zezé Di Camargo e Luciano, Neymar e Ivete Sangalo. Outro tema muito desenvolvido nesse período foi o de homenagem a estados e municípios, que ficaram conhecidos no mundo do samba como enredos CEP. Choveram homenagens para Goiás, Brasília, Macapá, Espírito Santo e por aí vai. Esses enredos tinham, geralmente, o objetivo de arrumar uma “grana” extra com os governos, que viam a escola de samba muito mais como um bom potencial político, do que fazer um enredo de conteúdo. Sobrou espaço ainda para enredos mais esquisitos e esdrúxulos, como Rock In Rio, Iogurte, Leite Ninho, Cavalo Mangalarga Marchador, Ilha de Caras e jogos. O resultado disso é que esses enredos trouxeram dinheiro e visibilidade para as escolas, transformando ainda mais os desfiles em um show business. Mas, por outro lado, empobreceu os enredos e, principalmente, o quesito samba-enredo. Coitados dos nossos compositores! Tiveram que fazer samba e poesia com temas tão distantes da sua realidade.

Outro fator prejudicial desses enredos é que os seus desfiles se transformaram em apresentações que mais pareciam grandes marchas de pessoas fantasiadas do que realmente desfiles de escolas de samba.

Para o Carnaval de 2021, as grandes escolas do Rio voltam a olhar para dentro da sua história e de sua identidade e fazem enredos cuja temática é a cultura negra na perspectiva da afirmação de narrativa e a luta antirracista.

A Mocidade Independente de Padre Miguel, que desde 1976 não fazia enredo de tema negro, vem para o Carnaval de 2021 com “Batuque ao Caçador”, homenageando o orixá Oxóssi, protetor da Verde e Branco da Vintém. O Acadêmicos da Grande Rio, que neste ano já tinha feito um tema negro em seu desfile e quase beliscou um título inédito de campeã do carnaval carioca, vem novamente falando da negritude e de sua religiosidade. O tema da escola de Duque de Caxias será ”Majeté! Sete Chaves de Exu”. Por sinal, essa será a primeira vez na história das escolas de samba do Rio de Janeiro que um enredo conta a saga entre as humanidades e o sagrado desse importante orixá. Os dois enredos mostram o samba como um fenômeno social, que tem explicação na energia da tradição religiosa de matriz africana.
Beija Flor, com “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija Flor”, e a São Clemente, com seu “Ubuntu”, vão propor refletir sobre o pensar a vida pelos ensinamentos africanos.

Empretecer, como propõe a Beija Flor, é refletir e ver não só a escola nilopolitana, mas todas as escolas de samba como produto cultural da diáspora negra. Ubuntu, tema da São Clemente, é uma filosofia africana baseada e sustentada nos valores da solidariedade e do respeito nas relações entre as pessoas. Contrasta-se com o individualismo liberal da nossa sociedade de mercado. São nossos ancestrais africanos nos ensinando a sermos mais humanos em sociedade.

A Unidos de Vila Isabel vai homenagear o seu maior compositor de samba-enredo: Martinho José Ferreira, o nosso Martinho da Vila. Criador de “Kizomba, a Festa da Raça”, considerado o maior desfile da era Sambódromo e na qual Zumbi é reafirmado como símbolo da nossa liberdade.

A Portela vem abordando religiosidade, ancestralidade e preservação da natureza com seu enredo “Igi Osè Baobá”, que fala das míticas árvores africanas, as “Senhoras do tempo”.

E, finalmente, o enredo do Acadêmicos do Salgueiro é “Resistência”. Por meio desse tema, vai mostrar a Vermelho e Branco como escola de samba pioneira na luta contra o racismo estrutural brasileiro, desde os tempos de “Zumbi dos Palmares”, primeiro enredo do Salgueiro a abordar o negro como sujeito da sua história.

Essa volta dos enredos de cultura negra no grupo especial das escolas de samba do Rio de Janeiro, depois de um início de milênio cujas escolas fizeram temas fora do contexto cultural do mundo do samba, criando espetáculos monótonos e branqueado na narrativa, nos mostra que as escolas de samba estão, quem sabe, assumindo sua identidade negra do passado, que foi sendo abandonada ao longo das décadas por uma postura de fazer enredos comerciais, sem ligação com a sua cultura.

É a consciência da importância da força do negro novamente na escola de samba.


CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

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