Por Ricardo Cravo Albin

Volto a um assunto que praticamente já se esgotou, porque aquecido – e muito – há dias quando a palavra “favela” voltou a designar aquilo que por décadas o entendimento popular sempre chamou de “favela”.

E retomo um assunto já esgotado por uma única razão: para nomear, reclamar e protestar contra os “sabichões” que ousaram lá atrás castrar o nome favela para impor o absurdo apelido de “aglomerado subnormal”, cuja negatividade já se embutia no próprio nome. Pela classificação abominável de “aglomerados subnormais” os gênios do Censo o entendiam como conjuntos de no mínimo 5 unidades habitacionais carentes de serviços essenciais, ocupando terreno de propriedade alheia e dispostas de forma desordenada ou densa.

Favela, segundo os gênios da inovação despropositada, seria uma denominação pejorativa. Mais pejorativa, oh sabichões, que “aglomeração subnormal”? Quem ousa penetrar nas cabeças desmioladas desses gênios que gravitam na burocracia estatal pode ficar louco varrido. Recentemente a colunista Flávia de Oliveira escreveu belo artigo “Favela, sim”, em que assegura que “favela tem direitos a serem atendidos, carências a serem superadas, pessoas a serem respeitadas”. Flávia, sempre ativa na defesa de causas justas, conclui – “favelas são parte importante e representativa das cidades. Favelas têm direitos a serem atendidos, carências a serem superadas. São territórios de socialização e afeto e trabalho. Lar, em resumo, haverão de ser preservadas, não banidas, porque guardam historia e potências”. Jamais, eu concluo, poderiam ser desterradas de seu nome tradicional favela, para merecer o escárnio do medonho apelido “aglomerado subnormal”.

Aliás, qualquer beabá, qualquer escola primária, ensina as origens do nome favela.

O termo surgiu após a Guerra de Canudos, na Bahia, onde ficava o Morro da Favela original, graças a uma planta conhecida como faveleira, dotada de muitas favas e extremamente abundante no local. Alguns soldados da Guerra de Canudos, ao regressarem para o Rio em 1897, não receberam o soldo prometido e foram forçados a invadir o Morro da Providência, que ganharia o apelido anterior de favela, referente a Canudos onde lutaram.

Morro da Providência, a primeira favela a ser construída no Rio. (Divugação)

O Morro da Providência, invadido para se transformar no Rio em toscas moradias de ex-escravizados que não tinham qualquer lugar para morar, crescia em um ritmo ainda mais acelerado que a miséria e as crises econômicas da primeira década do presidencialismo no Brasil, em especial na Capital Federal, o Rio. Com a total abolição da escravidão, quase todos os ex-escravizados do Vale da Paraíba – 200 mil ou cerca disso – invadiram a cidade do Rio. Em 1904, o governo tentou a primeira remoção da Favela da Providência. O próprio governo desativaria a remoção ao perceber que as favelas eram mão de obra barata para trabalhar na pedreira do próprio morro, ou nas demais obras públicas, ou ainda no cais do porto, ou mesmo nas inúmeras indústrias que já se espalhavam pela zona central do Rio. Foram ficando, ficando. E o Rio se favelizou muitíssimo mais, descontroladamente. Uma segunda tentativa de remover as favelas ocorreria no governo Carlos Lacerda, com Sandra Cavalcanti, meio século depois.

A palavra favela, enquanto seria também pejorativa, ostentaria configurações até românticas, ou sentimentais, adentrando pelo imaginário poderoso da canção popular. Muitos sucessos de carnaval, ou não, privilegiaram as favelas como tema de exaltação, de poesia, de sentimentalidade de canções. A favela foi cantada em muitos carnavais por variados compositores, como na vencedora (Carnaval de 1959) Favela Amarela – “Favela amarela/ Ironia da vida/ Pintem a favela/ Façam aquarela/ Da miséria colorida”. Hoje esta Favela Amarela é um tema clássico (de Oldemar Magalhães) do protesto social. Não tão conhecida, contudo, como o antológico Chão de Estrelas, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa, poema todo inspirado em um barracão típico de favela dos anos 40. Onde o poeta Bandeira encontraria um dos melhores achados poéticos da língua portuguesa – “Tu pisavas nos astros distraída”, frase antecedida por versos igualmente inspiradíssimos “A porta do barraco era sem trinco/ Mas a lua furando o nosso zinco/ Salpicava de estrelas nosso chão”.

A volta da palavra “favela” faz retomar o bom senso. Que o Brasil parece esquecer a cada quinze minutos.

A favela do Morro da Coroa, com o Cristo Redentor ao fundo. (Foto: Mauro Pimentel/AFP)

P.S – Nota fúnebre: Com tristeza, registro a morte em Brasília do diplomata Samuel Pinheiro Guimarães. Meu amigo de bancos escolares, Samuel foi um dos mais importantes e destemidos diplomatas de sua geração. Atuou como Secretário Geral do Ministério das Relações Exteriores. Vice-presidente da Embrafilmes, foi obrigado a deixar o cargo pelo impacto do filme Pra Frente Brasil, um amplo libelo contra a tortura de presos políticos. Samuel foi meu amigo por décadas e deixa memória muito acesa em relação à sua luta pelas causas mais generosas do país. Procedeu com conveniência o Presidente Lula hoje ao divulgar nota de extremo pesar do país pela morte de um homem público da dimensão de Samuel Pinheiro Guimarães.

RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

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