Por João Marcos Buch –
As necessárias restrições ao cotidiano, decorrentes da pandemia, fomentaram os instrumentos digitais e as comunicações de vídeo e áudio.
No âmbito do sistema de justiça, inclusive o criminal e de execução penal, como regra, as audiências passaram a ser feitas por meio de videoconferência. Muitos defendem a manutenção dessa modalidade, mesmo após a superação da crise sanitária.
Já publiquei opinião sobre o direito fundamental da pessoa em se manifestar perante o juiz, sem barreiras, de maneira humanamente física, mormente quando esse direito se refere a um ato de defesa diante de uma ação penal.
Não trarei aqui novamente referidos argumentos. Hoje, apenas relatarei um fato.
Como é sabido, respeitando os protocolos sanitários, permaneço fazendo instruções presencialmente dentro da unidade prisional.
Pois bem, em recente audiência de justificação, para avaliar uma falta disciplinar, logo que o apenado foi trazido, percebi que ele tinha dificuldade para falar e andar, bem como estava muito magro. A máscara que ele usava não escondia o rosto afundado, com ossos salientes. Pedi que se sentasse e ordenei fossem-lhe retiradas as algemas.
Perguntei então se ele sentia-se bem, ao que respondeu que sim, mas que estava cansado. Verificando os autos e seguindo na inquirição, soube que ele havia contraído tuberculose na prisão, fazia um mês, e que estava recebendo tratamento, sem mais risco de transmissibilidade. Mesmo assim, perdera peso e não recobrava as forças.
Imediatamente, requisitei informação sobre as condições da cela em que ele morava. A resposta, que já imaginava, foi de um local superlotado, com mais que o dobro da capacidade. E ainda, segundo o relato médico, em razão das condições insalubres em que vivia o paciente, num confinamento contínuo, seu quadro se agravava, dificultando a recuperação.
Assim, ouvindo o Ministério Público e a Defesa e considerando a individualidade do caso, autorizei a prisão domiciliar àquele apenado, para tratamento da doença.
Neste particular, segundo dados da FIOCRUZ no Brasil 73 mil pessoas foram diagnosticadas com TB no ano de 2018 e mais de 4 mil mortes registradas, sendo a população privada de liberdade responsável por 11% desses casos. Ou seja, as prisões brasileiras são vetores da disseminação da bactéria da tuberculose, evidentemente em razão da superlotação, com detentos amontoados em celas sem insolação, ventilação cruzada e higiene.
A realidade do sistema de justiça criminal e carcerário é esta, com penas que têm ido muito além do que a lei prevê, chegando ao ponto de submeter detentos a doenças infecciosas graves, sem possibilidade de convalescência, em um retrocesso civilizatório trágico e vergonhoso.
O artigo 8, item 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), estabelece o direito de toda pessoa de ser ouvida por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial. Estou certo que essa garantia não abrange a oitiva à distância, virtual, asséptica e que por isso não se atenta ao ser humano de carne e osso.
Se como juiz de direito eu não assumir as responsabilidades que me cabem, que se encontram muito bem delineadas nas normas que regem os direitos humanos, então o que me resta é abandonar a toga, o que não farei!
Não fosse minha presença física na audiência de justificação, jamais teria visto o que vi. É bem provável, estivesse eu no conforto de meu gabinete, em frente a uma tela de computador, e aquele ser humano enfermo, infectado dentro de uma unidade prisional, sofreria ainda mais, podendo até mesmo morrer por consequências da doença.
A prisão não é digital, passou da hora de enfrentarmos sua crueldade presencialmente, face a face, com todos os nossos sentidos.
JOÃO MARCOS BUSH é juiz de direito da vara de execuções penais da Comarca de Joinville (SC) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. (Fonte: Justificando)
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