Por Lincoln Penna –
A guerra é a continuação da política por outros meios. (Carl Von Clausewitz)
Essa sentença do oficial militar prussiano proferido no século XIX se fosse dito hoje de forma invertida, ou seja, a política como um instrumento da guerra por outros meios que não os convencionais não seria nenhum absurdo. Ela estaria mais condizente com o que se passa hoje em dia, sem o exagero que pode ser considerado à primeira vista pelos mais comportados analistas. Isso porque a quantidade difusa da violência, que costuma caracterizar os conflitos bélicos, é um fenômeno que tem sido naturalizado neste primeiro quarto do século XXI.
O sábio Noam Chomsky há cinco anos e na altura de seus 90 anos de idade prognosticou que o mundo está diante de dois grandes perigos e, consequentemente, desafios a serem enfrentados: o dos efeitos dos eventos extraordinários que tendem a permanecerem em nosso meio-ambiente, e o dos surtos de lideranças sociopatas, fenômenos que podem vir a se tornarem mais constantes. Acrescentaria que esse ambiente que acolhe essas lideranças favorece em muito o advento de novas ondas neofascistas em face da insegurança que ronda o mundo.
As notícias diárias a que somos submetidos ao invés de provocar a indignação ou ao menos a perplexidade, ao contrário é vista como algo distante por comodismo e desapreço com os seus semelhantes e, portanto, alheio aos que não querem se incomodar de modo a esperar dos poderes institucionais a tarefa de solucionar a diversidade desses casos. É uma atitude nada republicana de transferir para as ditas autoridades o enfrentamento desse problema como se a cidadania nada tivesse a ver. E o pior, acabam por apoiar as ações mais truculentas em nome da ordem, passaporte que pode nos levar a novos regimes nazifascistas.
Assim, o que deveria chocar é a evidência de estarmos imersos numa guerra não convencional, embora essa esteja presente em nosso cotidiano. Essa guerra de novo tipo se conjuga de forma a assumir uma presença nas nossas relações sociais. E apesar dessa evidência estamos sempre a evocar a paz como uma prece, sem tomar iniciativas propositivas e concretas tão necessárias para a erradicação desses males.
Atribuir aos poderes que nos governam a resolução dessa situação calamitosa é compreensível por um lado dada a insegurança a reforçar esse apelo. Afinal, as ações delituosas têm gerado fragilidades no corpo social, mas por outro lado acaba tão somente se limitando a denunciar uma situação que tem gerado permanente insegurança, que com essa denúncia os representantes do povo tenham de tomar as iniciativas que se tornem necessárias. No entanto, é pouco, porque se a solução não reduz à repressão, tampouco as vozes isoladas pouco podem fazer.
A alternativa mais consistente consiste em dar início à organização popular onde ela puder ser constituída de maneira segura e permanente e com a consciência de que dela deriva a mobilização das pautas relativas à segurança dos cidadãos e cidadãs. Independentemente disso, em determinadas esferas é necessário conter as formas de violência continuadas. Todavia, a raiz do problema permanece porque ele se reveste de outra natureza. Portanto, é outro e precisa ser conhecido para que se possa combatê-lo.
Na realidade, a raiz do problema ou o fator desencadeante dessa espiral de violência se encontra na lógica que nos governa, tanto no plano dos estados nacionais quanto no terreno das nossas relações sociais. Em outras oportunidades fiz menção à lógica, que pode ser explicitada na incessante busca desenfreada de vantagens materiais e financeiras responsável pelo desencadeamento de toda sorte de violência, seja ela física, lançando mão de meios letais, de caráter moral ou de sentido ético. Em qualquer desses casos usados justamente para fins de interesses nacionais ou particulares em detrimento dos interesses gerais, que devem prevalecer numa sociedade fundada na justiça.
Essa lógica individualista tem a ver com a ideologia capitalista. Não se trata de um discurso esquerdista para um público concentrado numa bolha interessada em fustigar o modo que nos governa. Essa lógica tem objetivos inerentes ao desenvolvimento desigual desse modo de produção caracterizado pela necessidade de acumulação na dinâmica de seu funcionamento. Consciência que já se faz presente nas sociedades capitalistas de ponta. E para isso é conveniente lembrar o que disse o mesmo Clausewitz. Segundo explicitava, “a guerra é um ato de força para obrigar o nosso inimigo a fazer a nossa vontade”. Tome-se guerra como toda forma de violência com que temos convivido nesse mundo que se fragmenta movido por estratégias de dominação que impedem a convivência dos povos.
A absorção dos valores dessa lógica tem impregnado comportamentos e atitudes que alimentam ambições desmedidas resultantes da cobiça que tem contagiado não apenas os donos de capital como as pessoas que incorporaram esses valores centrados num individualismo excessivamente egoísta, avesso a tudo que favoreça a solidariedade, a repartição de bens comuns, indispensáveis para o acesso de todos e para o bom rumo da humanidade.
O que se assiste nos grandes centros metropolitanos de todo o mundo são cenas cruéis que têm se avolumado e já se expandem para as médias e até as pequenas cidades a registrarem os mesmos horrores de uma guerra ininterrupta. Se isso é uma manifestação de barbárie parece que hoje não se tem mais dúvida. Interromper essa escalada é urgente. Trata-se de uma pauta que transcende as sociedades nacionais, pois todas com maior ou menor virulência vivem esse problema.
Diante desse descalabro necessário se torna a criação de uma governança mundial. Não fossem esses episódios a aparentarem casos isolados sabe-se que muitos deles crescem em função da ação de organizações criminosas, que não se encontram mais restritas às suas fronteiras originais. No que se refere a determinados países, como o Brasil elas já ocupam territórios onde exercem seus crimes continuadamente.
Portanto, já deixou de ser um caso de polícia para assumir a dimensão de um enorme problema de ordem política e até de soberania nacional. O trágico é que esses contingentes dispostos a tudo tendem a ser arrebanhados por grupos políticos vocacionados ao fascismo, expediente usual nas crises econômicas tal como ocorreu no passado recente.
Uma entidade que seja constituída de modo a ter como objetivo central a segurança da cidadania em todas as partes do mundo é uma exigência a se impor, sem dúvida. Sua formatação pode parecer de difícil execução, porém a emergência tornou essa necessidade vital para a preservação dos valores democráticos, na medida em que essas atividades ilegais afetam a essência dos princípios democráticos dada a prevalência de iniciativas extralegais que passaram a ser usuais.
Imprescindível é a palavra que convém para definir essa necessidade. Mas é bom ficar claro que para fazer valer uma ordenação baseada na preeminência da paz generalizada torna-se indispensável o combate às forças e fatores geradores da desigualdade social, porquanto não pode haver paz sustentável sem justiça social. A conjugação dessas duas condições fortalece os valores que devem ser defendidos de forma irrecusável. Ignorá-los é incidir no sistemático erro de usar a guerra tresloucada contra os pobres sob o pretexto de defendê-los contra a criminalidade.
Não bastam as guerras que têm se sucedido e se tornado intermitentes, temos convivido com as guerras sociais, aquelas que atropelam o respeito à dignidade de comunidades já vulnerabilizadas pelas condições precárias de existência e fortalecem as forças militares.
Assim, a máxima de Clausewitz ganha uma segunda leitura na qual cabe a tal inversão segundo a qual trocam-se as ações políticas pelas ações de uma guerra social onde o que prevalece é a militarização da sociedade na certeza de que só assim se coibirá a presença das práticas extralegais, quando o próprio estado é quem a pratica.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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