Por Jeferson Miola –
«Sigan ustedes sabiendo que, mucho más temprano que tarde, se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre para construir una sociedad mejor»
(Salvador Allende, discurso no La Moneda, em 11 de setembro de 1973)
As placas tectônicas da política se movem no Chile. A nova geração da esquerda chilena, fortalecida no contexto da insurgência social dos últimos anos, rapidamente ocupou o centro da política e passou a assumir protagonismo hegemônico na condução da revolução democrática que avança no país.
A eleição de Gabriel Boric/Frente Ampla impulsiona o processo constituinte em curso, assim como fortalece potentemente a dinâmica política, popular e cultural que incendiou as ruas do Chile denunciando a exaustão do sistema falido e exigindo um novo modo de vida que represente o oposto do neoliberalismo.
Na visão do analista político Tomás Mosciatti, diretor da Rádio Bio Bio e comentarista da CNN/Chile, “a vitória nas eleições não foi da centro-esquerda, foi da esquerda – assim mesmo, ‘sem sobrenomes’. Nunca a esquerda havia tido tanto poder. Esta vitória é superior à de Salvador Allende, em 5 de setembro de 1970; é uma vitória icônica. A esquerda conquistou um mandato popular, um mandato legítimo para redigir a Constituição sem nenhuma limitação. Começa então uma nova República”. Este jornalista não pode ser tachado de esquerdista; é apenas um observador atento da cena política chilena.
A circunstância histórica é, de fato, singular. Em que pese as tentativas dos governos precedentes da ex-Concertación, em especial na presidência Michele Bachelet, não existiu antes correlação de forças favorável à convocação de uma Assembleia Constituinte para sepultar a Constituição pinochetista de 1980.
Neste sentido, a vitória desta jovem e revolucionária esquerda do Chile abriu “as grandes alamedas” por onde trafegam duas transições em modo, tempo e forma combinadas:
[i] a transição levada a cabo pela Convenção Constitucional, que permitirá ao Chile passar da institucionalidade fascista e do Estado privatista-policial legado da ditadura de Pinochet, para uma República plurinacional, democrática, justa, igualitária, de garantias e direitos sociais e de bens públicos/comuns desmercantilizados e desprivatizados; e
[ii] a transição que o governo Boric iniciará a partir de 11 de março de 2022, do ultraliberalismo ao pós-neoliberalismo, que materializa um programa de justiça e igualdade social, de democracia nas dimensões econômicas, sociais e existenciais, e de direitos da população a serviços públicos de educação, saúde, moradia, aposentadorias e pensões.
Será um processo longo, complexo e, presume-se, dialeticamente contraditório, como todos processos político-sociais em que o velho ainda não morreu e o novo ainda não terminou de nascer.
Esta geração da nova esquerda, extremamente jovem, ocupará o centro da política chilena por várias décadas ainda. Esta nova esquerda é o novo sujeito histórico; é o bloco social em condições de se constituir como força hegemônica do próximo período, dotada de capacidade política para impulsionar e conduzir as mudanças profundas desejadas pela maioria do povo chileno.
Além do próprio Boric, o grupo dirigente e o que compôs o comando central da campanha é integrado por quadros políticos muito bem preparados e que, apesar de muito jovens, já são bastante temperados na luta política pela esquerda, como Camila Vallegos/33 anos, Giorgio Jackson/34 anos, Izkia Siches/35 anos e a maioria das demais lideranças.
É preciso ficar claro, porém, que a vitória de Boric, mesmo estrondosa e acachapante como foi, não significa, entretanto, o fim da ultradireita, como também não representa o fim da ameaça de contrarrevolução autoritária e ultraliberal no país.
Nas duas casas do Congresso a representação parlamentar da Frente Ampla é minoritária, porém não a ponto de inviabilizar interesses do governo Boric e da maioria do povo chileno, o que exigirá estratégias permanentes de pressão popular sobre o parlamento.
A luta política e social deverá se intensificar e polarizar ainda mais no Chile, pois as oligarquias dominantes não assistirão passivamente à perda de poderes e de privilégios.
Com a conquista do poder nacional e com a maioria de quase 80% na Constituinte, a esquerda chilena reúne maiores capacidades e forças ainda maiores para deter a reação e dar passos sólidos para avançar a revolução democrática e antineoliberal.
A votação histórica de Boric
A eleição de Gabriel Boric/Frente Ampla condensa ineditismos e recordes. Com 35 anos de idade completados em fevereiro passado, Boric é o presidente de menor idade a governar o país em toda história. E um dos mais novos – senão o mais novo – chefe de Estado e de governo do mundo.
A votação obtida por ele é recorde, assim como é recordista a participação popular na eleição. Ele conquistou 4,62 milhões dos 8,36 milhões de eleitores que foram às urnas, conforme quadro a seguir:
Boric também venceu o ultradireitista José Antonio Kast em praticamente todas regiões do país.
Da disputa acirrada à vitória folgada
Os levantamentos de intenção de votos e os trackings das duas candidaturas indicavam uma eleição acirradíssima, disputada voto a voto. Estimava-se uma diferença apertada, na faixa dos 3%.
A apuração mostrou, no entanto, uma vitória folgada de Boric por uma diferença de 971.024 votos – 11,7% a mais que seu oponente.
O fator determinante para esta extraordinária vantagem foi o aumento de 1.250.034 eleitores no 2º turno em relação ao primeiro, sobretudo de eleitores jovens. É razoável supor-se que este incremento de 17,6% seja efeito direto da estratégia da campanha de Boric de capilarizar o contato com o eleitorado em todos territórios do país com a iniciativa “Un millón de puerta a puerta por Boric”.
Na largada do 2º turno, o comando da Frente Ampla estabeleceu a meta ambiciosa de alcançar 1 milhão de casas com a mensagem da candidatura, produzindo um efeito propagador de adesão da cidadania a um processo que passou a ser de uma campanha em movimento – ou de um movimento em campanha.
A dois dias da eleição, em 17 de dezembro, o comando de Boric contabilizou a incrível cifra de “1.261.000 puertas abiertas reportadas”; ou seja, cerca de 5 milhões de pessoas comunicadas diretamente pela campanha – algo como 25% da população total do país. No Brasil, equivaleria a cerca de 52 milhões de pessoas. Uma proeza política!
Em entrevista realizada com a senadora Isabel Allende na véspera da eleição [18/12], ela disse que o fator que inibiria a ameaça de Kast de gerar impasse e não aceitar o resultado seria a grande diferença pró-Boric decorrente do aumento do comparecimento eleitoral.
Para a senadora, haveria um forte aumento de participação de eleitores jovens para votarem em Boric. O prognóstico desta senadora do Partido Socialista e filha do presidente Salvador Allende, que inspira e transpira a política chilena há mais de 70 anos, mostrou-se acertado.
O desafio de resgatar a pleno o “espírito da rebelião”
O aumento extraordinário de votantes no 2º turno não permitiu, mesmo assim, que Boric fosse destinatário pleno dos votos do contingente de eleitores que no plebiscito de outubro de 2020 votou pelo “Apruebo”; ou seja, a favor de uma Assembléia Constituinte exclusiva [quadros]:
O plebiscito representou um salto na capacidade de iniciativa política da nova e jovem esquerda do Chile. Isso porque a o plebiscito canalizou a insatisfação, a fadiga e o mal-estar generalizado da população chilena com a barbárie ultraliberal.
A jovem e revolucionária esquerda chilena conseguiu captar este sentimento – porque se identifica e se reconhece nele – e soube dar vazão à energia liberada na insurgência popular que se acumula desde os anos precedentes.
Esta nova esquerda, que nasceu da crítica contundente ao modo de vida capitalista e da oposição à gestão neoliberal do país pela ex-Concertación, é quem consegue encarnar o “espírito dos tempos” antineoliberais. Ela sabe interpretar os anseios das juventudes e da maioria da população chilena por uma outra forma de vida em sociedade que não seja “invivível” e paralisante como é hoje.
Um desafio prioritário para a nova esquerda chilena no poder a partir de 11 de março do próximo ano será o de reencarnar o espírito da rebelião social que contagiou a subjetividade e o imaginário popular e que se manifestou na forma de 78% a favor da Constituinte.
Esquerda venceu mais pela mística antineoliberal do que pela retórica antifascista
Por mais ameaçador que o candidato nazista e de ultradireita José Antonio Kast seja para a democracia, do ponto de vista da maioria da população, contudo, a questão fundamental que mobilizou maiorias sociais pró-Boric foi a insatisfação com a difícil realidade de vida.
Por certo a ameaça Kast foi decisiva para definir o apoio dos estamentos liberais e democratas do país a Boric, mas a disputa fundamental entre Kast vs Boric representou o antagonismo entre neoliberalismo vs antineoliberalismo.
O bordão “foram 30 anos, não 30 pesos”, do estallido social de 2019, sintetiza o espírito dos tempos atuais, de profundo incômodo e mal-estar com o neoliberalismo.
Há quem atribua ao método horizontal de organização política dos agrupamentos que integram a Frente Ampla um papel preponderante para a vitória. Esta nova [“ancestral”, apesar de abandonada] cultura política horizontal e democrática da esquerda foi relevante, claro, mas não reponde pelo sucesso total da conquista presidencial.
Outro fator parece ainda mais fundamental neste êxito, que é a capacidade desta nova esquerda não só de suceder, em termos geracionais, a tradição histórica da esquerda chilena, como a capacidade de incorporar uma visão programática crítica e contemporânea sobre o capitalismo ultraliberal e sua incompatibilidade com as aspirações de vida digna acalentadas pela maioria da população.
A nova esquerda tem mostrado o mérito de conseguir internalizar e encampar as demandas difusas e diversas que integram o cardápio da rebelião popular, tais como a questão climática, a igualdade de gênero, o “buen vivir” e os bens comuns; o respeito à diversidade, à pluralidade e à plurinacionalidade; a crítica ao consumismo, ao individualismo e ao egoísmo; a busca pelo Estado de bem-estar social, a aspiração por uma democracia real etc etc e etc.
Se abriram as grandes alamedas
O Chile vive o mais promissor e potente processo de transformações sociais neste novo ciclo histórico. A eleição de Boric, combinada com a maioria progressista e de esquerda na Convenção Constitucional, movimenta a água do moinho que movimenta a engrenagem da revolução democrática no Chile.
O desfecho, evidentemente, é incerto, e só o tempo poderá mostrar qual será. A atual geração dirigente do país – uma jovem e revolucionária esquerda – terá ainda muitas décadas de transcendência e centralidade na política do país.
Por isso mesmo, poderá trabalhar com paciência histórica e inteligência estratégica no processo de construção de uma hegemonia duradoura que viabilize a concretização de um modelo exemplar de sociedade pós-neoliberal.
Em que pese a complexidade e as dificuldades do processo e a reação das classes dominantes a esta força irresistível da nova esquerda chilena, a verdade é que esta geração dirigente reúne condições objetivas e subjetivas favoráveis para fazer avançar a revolução democrática e a construção de um modelo pós-neoliberal neste país que foi o berço do neoliberalismo e poderá ser, também, o seu túmulo.
JEFERSON MIOLA – Jornalista e colunista, Integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), foi coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial.
Tribuna recomenda!
NOTA DO EDITOR: Quem conhece o professor Ricardo Cravo Albin, autor do recém lançado “Pandemia e Pandemônio” sabe bem que desde o ano passado ele vêm escrevendo dezenas de textos, todos publicados aqui na coluna, alertando para os riscos da desobediência civil e do insultuoso desprezo de multidões de pessoas a contrariar normas de higiene sanitária apregoadas com veemência por tantas autoridades responsáveis. Sabe também da máxima que apregoa: “entre a economia e uma vida, jamais deveria haver dúvida: a vida, sempre e sempre o ser humano, feito à imagem de Deus” (Daniel Mazola). Crédito: Iluska Lopes/Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
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