Por José Carlos de Assis –
Os filósofos políticos contemporâneos não costumam especular sobre formas ideais de governo como se fazia na antiga Atenas e como se fez no início da Idade Moderna, sobretudo em Londres e Paris. Limitam-se a criticar aspectos dos sistemas atuais de governo, não a natureza mesma de seu conteúdo, e sem abordar sua correspondência com a realidade atual. Isso, na medida em que passa o tempo, cria uma tensão insuportável entre forma ideal de governo, defasada em relação a seu tempo histórico, e o o governo efetivo, já decadente.
Na qualidade de economista político e de discípulo de filósofos políticos clássicos que já não tem como repassar para os contemporâneos suas doutrinas originais, mas podem passar inspiração, tentarei resumir a essência do meu pensamento em relação a sistemas de governo, sobretudo aquele que se pode esperar para o Brasil. Em primeiro lugar, como sugeri no artigo de ontem com menos detalhes, é preciso liquidar para todo e sempre o sistema presidencialismo puro, sujeito, como temos visto, a riscos como os de Bolsonaro e de Trump.
Na era nuclear e das armas disseminadas de destruição em massa, as decisões de Defesa não podem ficar sob a responsabilidade de uma pessoa isoladamente. Mas também não deve ficar sob o controle exclusivamente do presidente os temas do meio-ambiente, da genética e da saúde pública. Trata-se de questões vitais para o presente e o futuro da humanidade. Como não há garantia de que, no processo democrático, sempre se eleja um sábio para governar, a alternativa é um presidente cercado por um conselho deliberativo.
Não é necessário que esses conselhos, como o presidente, sejam eleitos diretamente pelo povo. Basta que seja referendado pelo Parlamento, sob indicação do presidente, e entre não parlamentares, para evitar ao máximo interferências políticas. Notem que não se trata de uma abstração. Foi a presença de um conselho informal de militares que evitou que Jair Bolsonaro decretasse guerra contra a Venezuela. E no norte sua inspiração maior, Donald Trump, mantém o mundo em suspenso pela hostilidade nuclear contra Rússia e China.
A organização futura de um governo ideal, platônico, já existe em vários países parlamentaristas do mundo. O problema é a ausência de função do presidente, justamente ele que tem o voto direto ou representativo de toda a população. Entretanto, as funções mencionadas são exatamente as que convém conferir a um presidente eleito, num sistema de repartição do poder. Observe que não me estou referindo a um parlamentarismo de caráter apenas formal; estou me referindo a um aspecto substancial da divisão do poder estatal.
Entretanto, tudo isso se refere ao continente, não ao conteúdo do Estado. E é nesse ponto, não no aspecto formal, que temos situações críticas agudas na política, na economia e na sociologia brasileiras. É lugar comum dizer que passamos pela maior crise de nossa história, à qual se junta, desgraçadamente para milhares de brasileiros, a pandemia do coronavírus. E a pandemia é a síntese daquelas três crises, mais a sanitária. Isso porque não haverá solução real para essa desgraça que se abateu sobre o Brasil fora da união de forças nessas áreas.
Acontece que estamos com as instituições do Estado esgarçadas, incapazes de funcionar, e além do mais contaminadas pela corrupção. O presidente da República e seu vice são produtos de uma eleição fraudada, como reconhecido pelo próprio Bolsonaro. Rodrigo Maia e David Alcolumbre, seguintes na linha sucessória, só não foram enquadrados na Lava
Jato porque são protegidos por algum ministro do Supremo. O próprio presidente do Supremo, Dias Toffoli, foi capturado pelas gravações do Intercept, relacionadas à Lava Jato.
Isso significa que toda a linha sucessória está comprometida. A Constituição não fala em quem deveria suceder a Dias Toffoli,o último na linha sucessória com o eventual afastamento dos demais. O Congresso terá que decidir. São mais de 500 parlamentares só na Câmara, 39 partidos políticos e 29 com representação na Câmara. A prudência, no caso – se é que haveria prudência numa situação como a atual, governada pelo caos -, indica que melhor seria que se estimule, por fora, uma aliança entre partidos mais sérios, para mudar o sistema.
O primeiro ministro, num esquema provisório – completar o mandato de Bolsonaro -, deveria sair dessa aliança, preferivelmente por fora das siglas partidárias, para reduzir ao mínimo os atritos entre os partidos da base governamental. O processo deveria ser complementado pela convocação imediata de uma constituinte original, com condicionantes rigorosos para evitar a manipulação da eleição: eliminação do financiamento empresarial de campanha, limite para a contribuição individual e fim dos fundos eleitoral e partidário.
A propósito desse último ponto, é preciso avaliar que nos estamos acostumando com verdadeiras excrescências no sistema político-eleitoral brasileiro. Se entendemos partidos como uma parte do Estado – e eles são, efetivamente, partes do Estado – não faz nenhum sentido que cada um deles receba dinheiro para disputar o controle e a participação na direção do Estado. É como se o Estado estivesse dando dinheiro para ser administrado. Por outro lado, todos sabem que esses fundos são, sobretudo, fontes de corrupção descarada.
Essas mudanças institucionais, no plano ideal, deveriam ser rápidas para reduzir o stress da população brasileira numa situação que combina crise política, econômica e social aguda com crise de pandemia. Em outro tempo, isso se resolveria com uma intervenção militar. Cheguei a defender essa solução, que seria conjuntural. Desisti dela, como viram no meu artigo de ontem. Por outro lado, deve ser entendido que qualquer que seja a solução política terá de resultar do fato que o fator fundamental da crise é econômico.
Insisto em que, se não houver uma profunda mudança na economia, teremos uma contração do PIB da ordem de 10% este ano e uma taxa de desemprego real explosiva. A Europa e os próprios Estados Unidos estão caminhando para isso, e nós temos uma economia mais frágil que a deles. Estamos ameaçados de afundar mais. A saída é um novo regime fora neoliberalismo. Que não se inventem Levis, Meirelles e Guedes para cuidar da economia brasileira em tempo de crise. Eles, sobretudo Guedes, são especialistas em destruição.
Você pode dizer que sou um sonhador. Mas não sou o único!
*Como anunciei ontem, este é o último artigo regular que escrevo nos blogs. Daqui para a frente só volto a escrever quando tiver assunto especial para tratar, e que seja de fato de amplo interesse público.
JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964. Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro. Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica.
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