Por Gilvan Oliveira Silva Azevedo –
– O Juiz já chegou?
– Esta entrada aqui é apenas para Magistrados e Servidores.
– Você é o Juiz?
Perguntas que ouço no presente e desde 2006, quando tomei posse na Magistratura Trabalhista do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (Bahia), e que reproduzo sob inspiração de texto do juiz de direito Edinaldo César Santos Júnior para a Coluna Vozes Negras.
Inicialmente, pensando estar me protegendo, as atribuía à minha pouca idade e que também teria sido a juventude a destacar a atenção de alguns examinadores da prova oral. A repetição de coincidências foi descortinada quando um advogado, por ter o um pedido não atendido, comentou com um de seus pares, em tom de voz para que eu escutasse: “É isso que resulta quando se dá toga a um neguinho”.
A ingenuidade de quem ingressou na magistratura aos 26 anos e que acreditava estar em espaço igualitário se encerrou ao perceber que poucos eram as juízas e juízes negros, ao constatar que sempre associavam que juízes e juízas negras possuíam grau de parentesco.
Paulatinamente as impressões se tornaram certezas: a magistratura é um espaço elitista e ocupado pela branquitude e quem “destoa” do padrão, no sentido de tom de pele, incomoda, e esse desconforto determina não apenas seja questionado o magistrado em sua qualificação para além do que ocorre entre pessoas brancas, como também o leva a provar diariamente ser merecedor da conquista que representa ocupar posição alcançada por esforço, estudo, conhecimento.
Faço a narrativa em primeira pessoa porque o incômodo para o branco, racismo para o negro, ultrapassa o macrocosmo social e opera no microuniverso onde as questões raciais estão presentes. É cansativo precisar afirmar ser quem sou, porque um corpo negro na magistratura (ainda) incomoda muita gente.
Discutir desigualdade racial dentro de poder que tem como objetivo distribuir justiça é tarefa árdua, pois grande parte da branquitude, privilegiada pela cor da pele agregar vantagens, nega a existência do racismo, e se é por discutir o assunto que surge a possibilidade de reconhecimento do racismo e se inicie movimento de mudança, como o fazer se é negada a sua ocorrência?
Penso sobre as fases de enfrentamento do racismo e lembro das etapas sugeridas pela autora portuguesa Grada Kilomba, ao tratar de episódios de racismo cotidiano, e que provoca em “Memórias da plantação” a constatar a existência do racismo e reconhecer que culpa e vergonha são paralisantes. É essencial deslocar-se da inércia para reparação como estratégia antirracista e para um presente antidiscriminatório. Estudar é o ponto de partida. Não é fácil demonstrar o racismo no ambiente e na atividade da magistratura, ainda que de forma sutil.
Para ser notado exige compreender o racismo institucional, termo que Adilson Moreira explica nas “ações de agentes institucionais que têm um impacto negativo direto ou indireto sobre grupos raciais. Elas são motivadas pelos estereótipos que circulam na sociedade, sendo que eles também fazem parte da cultura e das práticas de um determinado órgão público ou privado.”
Para ser percebido é também necessário que o racismo seja entendido em sua dimensão estrutural, legando para negras e negros ocupações em posições subalternizadas, circunstância que remonta à tão festejada abolição da escravatura e que se restringiu a “libertar”, no plano formal, as pessoas escravizadas, sem lhes propiciar estrutura de trabalho e educação, alijando-as de ocupar atividades qualificadas e sedimentando a crença de que são destinatárias eternas daqueles lugares.
Há alguns anos, em evento fechado, faltaram copos no espaço do café e uma colega magistrada, sem cerimônia, segurou meu ombro e pediu que eu observasse a ausência na mesa. Ao me virar e ser reconhecido a colega abriu um sorriso e disse: “Você de termo é facilmente confundido com um garçom”. Todo o respeito à honrosa profissão de servir, mas destaco o fato para ilustrar que pessoas brancas entendem como natural que negros estejam em tais atividades, ao passo que causa estranheza ver pessoas negras em lugares institucionais de poder.
Esclareço que não faço relatos com a intenção de posicionar a juíza negra ou o juiz negro como vítimas da branquitude. Definitivamente, não! É meu objetivo, como também o faz o professor Adilson Moreira no livro “Pensando como um negro”, a partir das experiências de um juiz negro, proporcionar a discussão e reconhecimento de racismo estrutural, institucional e recreativo, e fomentar mudanças para permitir que mais negras e negros ingressem na carreira jurídica em equidade com pessoas brancas. Mais de um século depois da abolição da escravatura e ainda hoje vivencio racismo, porque ainda disseminado o pensamento de que negras e negros não devem ocupar espaços institucionais de poder, porque um corpo negro na magistratura (ainda) incomoda muita gente.
Em quinze anos de profissão também ouvi muitos “casos” contados por colegas de ações trabalhistas em que a vítima trazia em juízo a questão de racismo e na maior parte delas as sentenças não concluíam provado o fato que geraria dano moral. Surge o dilema, será que juízas e juízes brancos, que nunca tiveram contato com episódios de discriminação cotidianos, entenderiam a dor subjetiva daquele ator processual? Penso que a resposta é negativa. Como transformar essa realidade? Como possibilitar que o Poder Judiciário realize justiça e reconheça a existência ou inexistência da situação posta?
Respondo utilizando, mais uma vez, a lição de Adilson Moreira sobre a necessidade de uma “hermenêutica negra”, e para quem “pensar como um jurista negro significa conceber a realidade na qual vivo a partir das condições concretas da existência, das várias restrições materiais impostas àqueles que fazem parte de grupos que estão em uma situação permanente de subordinação. Nós negros que somos operadores do Direito devemos estar conscientes de que privações fazem com que sejamos sempre socialmente classificados como membros de um grupo específico, o que elimina a possibilidade de termos nossa individualidade reconhecida.” (MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Contracorrente, 2019.).
Esclareço que a ideia de “hermenêutica negra” não significa impedir que colegas brancas e brancos julguem ações que envolvam racismo, mas refletir que considerem interpretar questões raciais sob perspectivas das pessoas que as vivenciam cotidianamente.
Externar episódios de racismo, ainda que custe tornar públicos eventos pessoais, serve a demonstrar que é urgente mudar o cenário e possibilitar a transformação de pensamento a partir de dentro e para fora do sistema de justiça.
Passou da hora de reconhecer que situações de discriminação racial também afetam a pessoa que ocupa um corpo negro na magistratura. Passou da hora de pessoas brancas entenderem sobre os modos como atuam no mundo e refletirem sobre como as suas condutas, ao limitar a ideia de racismo a ações individuais e moralmente reprováveis, terminam por negar suas manifestações renovadas, aperfeiçoadas ou sutis, impossibilitando que superem fases de inércia para etapas de reconhecimento e reparação, para mudanças que possibilitem uma verdadeira inclusão racial.
Tenho consciência da minha negritude e da resistência que representa ser uma pessoa negra na magistratura. Compartilho minha experiência e anseio testemunhar as mudanças que aspiro, desejo que aconteçam para que desapareçam os modelos mentais que fazem pensar que um homem negro usando terno seja um agente de segurança ou pastor evangélico – o que já me aconteceu onde trabalho. Tenho consciência e celebro a minha negritude, desejo festejá-la em 20 de novembro e diariamente, em todos os espaços que o corpo de uma pessoa negra ocupar, seja na posição de magistrado, seja como um multiplicador de experiências de vida; para, por exemplo, visitar escolas e dizer que estou juiz, buscando realizar a justiça para quem recorre ao Poder Judiciário; para mostrar que o meu caminho é possível para crianças e jovens periféricos e de escola pública, que é possível ocupar com corpos negros e mentes estudiosas os lugares de poder que desejem estar. Ainda que se incomodem, ainda que desagrade, celebro a consciência da minha negritude e do meu corpo negro que a minha pessoa ocupa.
Por fim, vejo avanços em âmbito institucional e acadêmico e ações em movimento para despertar juízas e juízes brancos para estudo e qualificação, para compreender o racismo e seus meios de operação, para reconhecerem seus lugares no contexto de sociedade que desiguala pela cor da pele, para também contribuírem a transformar a realidade.
Pensar Consciência Negra me faz ter esperança.
GILVAN OLIVEIRA SILVA AZEVEDO é Juiz do Trabalho, TRT 5 Região.
A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando.
Publicado inicialmente no Justificando. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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NOTA DO EDITOR: Quem conhece o professor Ricardo Cravo Albin, autor do recém lançado “Pandemia e Pandemônio” sabe bem que desde o ano passado ele vêm escrevendo dezenas de textos, todos publicados aqui na coluna, alertando para os riscos da desobediência civil e do insultuoso desprezo de multidões de pessoas a contrariar normas de higiene sanitária apregoadas com veemência por tantas autoridades responsáveis. Sabe também da máxima que apregoa: “entre a economia e uma vida, jamais deveria haver dúvida: a vida, sempre e sempre o ser humano, feito à imagem de Deus” (Daniel Mazola). Crédito: Iluska Lopes/Tribuna da Imprensa Livre.
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