Por Maria de Fátima Siliansky de Andreazzi

Vésperas de eleições são períodos em que os interesses se organizam, em que projetos antes derrotados se apresentam como soluções para problemas profundos da sociedade. Assim ocorre na área de produção de insumos para a saúde no Brasil, estreitamente ligada ao desenvolvimento científico e tecnológico. Questão agravada pelas dificuldades de importação de determinados itens – máscaras, respiradores – no contexto da pandemia de covid-19, se apresentam projetos que procuram se chocar com o gritante laissez – faire do governo atual, que tem abandonado qualquer preocupação com o desenvolvimento industrial brasileiro e incentivado ativamente o desmonte da ciência nacional. É o retorno do neodesenvolvimentismo, matéria na ordem do dia da FIOCRUZ, que fará agora em dezembro seu congresso interno, cuja principal tese é transformar toda a sua imensa área de pesquisa e produção em plataforma de indução ao desenvolvimento de um chamado complexo econômico – industrial da saúde/CEIS, moldado a partir da dinâmica capitalista que rege o desenvolvimento tecnológico na saúde no mundo.

O que estaria em jogo? A FIOCRUZ em geral e, especificamente, o grupo de pesquisa do CEIS, foi um dos principais ideólogos do neodesenvolvimentismo na saúde, estando a frente de importantes secretarias de governo que lidaram com o tema na gerência petista da União. Seu principal programa foram as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo/PDP que são mecanismos de transferência de tecnologia que envolvem uma multinacional de medicamentos ou outros insumos para a saúde e laboratórios nacionais com compras públicas garantidas por um período para viabilizar a produção. A denominação neodesenvolvimentista se refere uma perspectiva econômica de substituir importações (de fato, o déficit da balança comercial, isto é, as importações que excedem as exportações, é uma fundamental preocupação do grupo); ao contrário da corrente desenvolvimentista dos anos 50-60, tem pouca preocupação programática com o contexto geral do desenvolvimento, o que dá sustentabilidade a industrialização. O que, para os teóricos desta corrente que mais avançaram, como Celso Furtado , recaem na necessidade das reformas de base para desconcentrar a renda e ampliar o mercado interno, como a reforma agrária, tributária, o controle da remessa de juros e um certo grau de protecionismo e de inflação. Ao contrário, os neodesenvolvimentistas de hoje convivem bem com a orientação liberal da política macroeconômica – metas de inflação, superavit primário, equilíbrio fiscal, que a inserção subordinada na mundialização financeira requer. Ao contrário, ainda, de importantes teóricos dos anos 50 e 60, não são nacionalistas, não tem em conta a centralidade da indústria nacional autônoma.

Mas se apresentam como expressões críticas perante a orientação prevalente da política econômica do governo Bolsonaro/generais dita ultraliberal. Pois, defendem a industrialização como indutora do desenvolvimento, no caso, associado ao capital multinacional, confundindo desenvolvimento com crescimento econômico. Nada diferente do que foi a política econômica do governo militar, especialmente os anos de Geisel/Golbery: tripé multinacional, indústria nacional associada, Estado garantindo infraestrutura e investimentos. Só que a indústria multinacional hoje se localizou na Ásia, por isso a desindustrialização brasileira que não reverterá com mais um round dessa política. Teoricamente, se apresentam críticos, numa mistura de Marx e Celso Furtado com Keynes e Shumpeter. Para aqueles que combatem a saúde ser transformada em mercadoria, é preciso entender o que estaria por trás de tamanho ecletismo.

No centro deste debate estão os laboratórios produtores de medicamentos e vacinas públicos. Os maiores, da própria FIOCRUZ: Farmanguinhos e Biomanguinhos. O Brasil, sendo um dos poucos países dominados a ter uma rede de laboratórios públicos, eles vivem à mercê dos interesses econômicos poderosos em jogo: já estiveram à beira do abismo no governo FHC; foram colocados como plataforma de indução de laboratórios privados para internalização da produção de alguns medicamentos, nos anos PT; foram desviados para envasamento cavalar de cloroquina do governo Bolsonaro. São um patrimônio que precisamos defender como base de uma indústria nacional autônoma. Essa é uma contradição chave que o Congresso interno da FIOCRUZ deverá se debruçar.

Substituir importações através da transferência de tecnologia de multinacionais, mesmo para empresas públicas, não são operações inócuas. Artigo de 2019 de pesquisadores do Butantan e da FIOCRUZ relatam que as empresas multinacionais “são relutantes em transferir a tecnologia de forma completa, de modo que visam impedir a criação de competidores em tecnologias de ponta, conhecimento e capacidade de produção… os acordos firmados abrangem métodos e tecnologias, muitas vezes, ultrapassados, preservando a dependência do fornecedor para o suprimento de tecnologias, insumos ou de materiais essenciais à produção, mesmo após o fim do monopólio garantido pelas patentes. As parcerias também podem impedir que novas tecnologias sejam agregadas (p. 52).

“estes acordos são incentivados pelos países desenvolvidos, sendo vistos como uma grande oportunidade econômica para as empresas multinacionais detentoras destas tecnologias muitas vezes já com patentes vencidas, e onde a transferência de tecnologia auxilia na ampliação de seu tempo de monopólio no mercado” (p. 52).

Tais acordos disputam a utilização da capacidade instalada física e os recursos humanos dos laboratórios públicos que deixam de desenvolver as tecnologias próprias para dedicarem-se aos PDPs. São muitos exemplos, hoje, de grupos de pesquisa desenvolvendo nas universidades vacinas contra a COVID-19 que não encontram financiamento e infraestrutura dos laboratórios públicos para entrarem em fase de produção.

A análise do capitalismo atual, o imperialismo, não é levada em conta pelo grupo do CEIS, apesar de reivindicarem o marxismo. A época do imperialismo é a época do capital concentrado, onde a competição entre os oligopólios substitui a livre concorrência, onde os Estados dominantes repartem o mundo em zonas de influência e a exportação de capitais tem a centralidade. A industrialização dos países periféricos é dificultada pois as empresas destes países encontram barreiras de escala, de tecnologia e de financiamento, entre outras. Mas, fundamentalmente, porque os países imperialistas almejam aplicar seus capitais numa industrialização a eles subordinada. Tendo na classe latifundiária exportadora seu principal esteio pois por ela mantém seu fluxo de matérias primas baratas, a grande burguesia é criada intimamente associada ao capital externo ou através da atividade econômica do Estado para criar infraestrutura necessária a essa expansão do imperialismo. Tal tipo de capitalismo que se desenvolve sob a base do latifúndio agrário-exportador que mantem relações de trabalho pré-capitalistas (semifeudal) a partir da exportação de capitais do imperialismo (semicolonial), foi identificado na experiência histórica da revolução chinesa como capitalismo burocrático. O Estado serve ao imperialismo dotando as indústrias multinacionais ou mesmo a grande burguesia associada ao imperialismo ou operando para o Estado (substitutas de importações) de subsídios fiscais, empréstimos e toda sorte de apoio. Quando não mais interessa ao imperialismo a produção no território brasileiro, constata-se impotentemente a sua saída a despeito de todos os incentivos públicos recebidos (caso recente da Ford). Essa grande burguesia existe pela integração com o imperialismo, daí não tem perspectiva de ampliação do mercado interno, nem pela reforma agrária (em muitos casos, é integrada com o latifúndio ou não irá contra um aliado seguro do imperialismo), nem pela progressiva desconcentração da renda. Com as pressões para liberalização dos mercados, o capital burocrático protegido pelo Estado fica à mercê da competição desigual ou acaba se integrando de forma subordinada às cadeias produtivas das multinacionais. As bases frágeis das empresas da grande burguesia brasileira na competição com os oligopólios internacionais implicam a permanente drenagem de recursos públicos sob a forma também de subsídios, empréstimos e perdão de dívidas que não garantem que elas não se vendam para as multinacionais. O parque farmacêutico brasileiro que existia até os anos 50 foi quase totalmente desnacionalizado. As empresas de genéricos que tiveram incentivos nos anos 90 são, hoje, associadas ao capital externo. Ou seja, o modelo da CEIS que não leva em consideração a teoria do imperialismo, é o caminho certo para a manutenção da subjugação nacional, da dependência tecnológica e do permanente fluxo para fora da riqueza nacional sob várias formas, inclusive pelas fabulosas contas de serviço pelo uso de tecnologia importada.

O certo é utilizar esses recursos públicos para o desenvolvimento tecnológico autônomo e importar o necessário, aproveitando a concorrência internacional entre os oligopólios até ter autonomia. Para aprender a fazer o que não sabemos, enviar nossos cientistas ao exterior e contratar cientistas estrangeiros se necessário. Assim o fizeram os países socialistas (no tempo que o foram), que saíram de uma base muito mais precária do que a nossa. Para que isso ocorra, evidentemente teríamos que utilizar as empresas públicas, fortalecer os laboratórios oficiais. Fortalecer empresa privada mesmo nacional, na época do imperialismo, é criar capitais a serem posteriormente incorporados à lógica do capital financeiro mundializado. Mesmo as estatais podem seguir essa lógica, já apontava Lenin em 1916.

Mas, quereria as classes dominantes brasileiras seguir esse caminho? Aqui entra o segundo uso incompleto do referencial teórico por eles apontado. Furtado , no final de sua vida, reflete que o desenvolvimento requer a progressiva aproximação entre uma teoria da acumulação, uma teoria da estratificação social e uma teoria do poder. As reflexões de Furtado pós golpe de 1964 quanto ao papel das grandes empresas multinacionais, sobre o fortalecimento do papel dos EUA e as dificuldades decorrentes para a periferia parecem não terem sido consideradas, assim, nos marcos teóricos do CEIS. Ao contrário de Furtado , que vê na classe latifundiária um poder político permanente, por controle de suas bases rurais, sendo uma força depressiva sobre o desenvolvimento, para os neodesenvolvimentistas não há sequer uma linha sobre a necessidade econômica da reforma agrária para o desenvolvimento sustentável do país, segurança alimentar e ampliação do mercado interno; quando muito essa reforma se torna um problema social de uma possível convivência harmônica entre a “agricultura familiar” e o agronegócio. O latifúndio agrário-exportador e a grande burguesia brasileira ambas servis ao imperialismo não têm a menor intenção de confrontá-lo com uma política industrial autônoma. Furtado sofreu as consequências de apoiar ativamente tentativas de ir contra esses interesses, sendo exilado pelo golpe militar de 1964. E fica claro, portanto, que a política dos teóricos do CEIS como dos neodesenvolvimentistas de forma geral, serve, principalmente, aos interesses do imperialismo e das classes dominantes brasileiras. Mas precisam por uma pitada de marxismo e algumas alusões a Celso Furtado para se apresentarem como progressistas, amortecer as ânsias de mudanças do povo, embotar a identificação dos inimigos de um projeto de desenvolvimento, necessariamente nacional e popular.

Que classes tem a possibilidade de lutar e sustentar uma política de desenvolvimento autônomo no campo da saúde? Não é a grande burguesia pois não é independente. Aqui, sim, se aproximam de Furtado que, mesmo com diversas ressalvas sobre o mimetismo cultural em relação aos países dominantes e o uso de tecnologias inapropriadas por parte da burguesia brasileira e mesmo levando em alta conta, por exemplo, o campesinato organizado nas Ligas Camponesas, ainda dirigia seu apelo à grande burguesia. Isso porque a confundia com a fraca burguesia nacional, e não percebia que esta última classe, que é, de fato, dominada pelo imperialismo, é incapaz econômica e politicamente de ser a vanguarda de processos, necessariamente, de ruptura ou mantê-los. Muito menos o latifúndio, oligarquias agrárias tradicionais, fregueses seguros do imperialismo e entrelaçados, na atualidade, com o capital financeiro. O Estado brasileiro é um Estado de classe, vamos ser marxistas, não teve e tem a capacidade de regular o capital segundo as necessidades sanitárias. E só ver como as PDPs tiveram que contemplar tanto todos os interesses, que se descaracterizaram enquanto projeto de autonomia nacional. Só podem sustentar um desenvolvimento autônomo e voltado às necessidades populares um Estado que tenha como base o campesinato interessado no fim da economia agrário-exportadora, o proletariado e a pequena burguesia, que se beneficiam com os incentivos a ciência e tecnologia nacional e a industrialização em larga escala, respeitando o pequeno papel econômico de uma burguesia de fato nacional, muito fraca e limitada. Vender ilusões sobre o caráter do Estado brasileiro só serve para garantir os interesses das classes dominantes. Só um outro caminho, prolongado, porém seguro, para cumprir as tarefas pendentes da Revolução democrática permitirá orientar a produção de insumos da saúde numa lógica não mercantil, mas das necessidades sanitárias do povo.

O dilema da FIOCRUZ então é, desenvolvermos a ciência e tecnologia nacional orientada para as necessidades do povo tendo como base os laboratórios públicos. Ou, por outro lado, drenarmos nossos recursos financeiros e humanos públicos para contemplar as multinacionais farmacêuticas e de equipamentos, a grande burguesia brasileira integrada aos circuitos produtivos e financeiros das finanças mundializadas e o latifúndio agrário-exportador consumidor abusivo de agrotóxicos e fertilizantes.

 Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


AGENDA

Tribuna recomenda!

NOTA DO EDITOR: Quem conhece o professor Ricardo Cravo Albin, autor do recém lançado “Pandemia e Pandemônio” sabe bem que desde o ano passado ele vêm escrevendo dezenas de textos, todos publicados aqui na coluna, alertando para os riscos da desobediência civil e do insultuoso desprezo de multidões de pessoas a contrariar normas de higiene sanitária apregoadas com veemência por tantas autoridades responsáveis. Sabe também da máxima que apregoa: “entre a economia e uma vida, jamais deveria haver dúvida: a vida, sempre e sempre o ser humano, feito à imagem de Deus” (Daniel Mazola). Crédito: Iluska Lopes/Tribuna da Imprensa Livre.