Por Sebastião Nery

Em maio de 1965, corridos do golpe militar de 1964, um grupo de políticos, jornalistas, líderes sindicais e estudantes baianos escondeu-se em São Paulo no apartamento pequenino e generoso do jovem repórter da “Folha de S. Paulo” Adílson Augusto, um santo de 20 anos, ali na Major Sertório, bem em cima do João Sebastião Bar, na boca da boca.

Não era bem um apartamento. Era um quarto de pensão com sala e banheiro, no sótão de velho casarão de três andares, as escadas gemendo e um boliche (depois “La Licorne”) fazendo barulho a noite inteira.

Era “A Mansarda”. Houve noites em que dormimos 12 pessoas, empilhadas pelos cantos. Uma vez, o Adilson chegou de madrugada e não podia entrar. Não havia onde pôr seu colchonete. Como teria feito São Francisco, dormiu sentado na escada para não acordar os “hóspedes”.

“A MANSARDA”

Éramos Mário Lima, deputado federal cassado e ex-presidente do Sindicato do Petróleo em Salvador; Hélio Duque, jornalista, professor, depois deputado federal do Paraná (PMDB); Domingos Leonelli, deputado federal da Bahia (PMDB), hoje secretario do Governo da Bahia ; Luís Gonzaga, presidente do MDB de Londrina; Carlos Capinan, o magnífico poeta e  compositor; Lamego, publicitário; eu, outros.

Quase todos já havíamos perdido o ano de 1964 nos quartéis de Salvador. Cada um, clandestino, lutava para livrar-se de mais um IPM e voltar à superfície. Enquanto a justiça e a liberdade não chegavam, usávamos nomes falsos, fazíamos biscates e comíamos coletivamente nos “sunabões” paulistas: um prato para três. E o tempo passando e as absolvições demorando e o medo do flagrante dando sustos diários.

O DELEGADO

Uma noite, era aniversário de Mário Lima, chegando de Fernando de Noronha. Fomos todos comemorar no “Pilão”, saudoso botequim no subsolo de uma galeria entre a 7 de Abril e a Itapetininga. Somadas, nossas “penas” passavam de 100 anos. E ainda havia os amigos: Antonio Torres romancista, Nelito Carvalho jornalista, Ubiratã Khun Pereira, Sr. Khun.

Chegamos discretos, pedimos batidas. Ao violão, em lugar da crooner de sempre, a loura e meiga Marilu, um senhor de voz poderosa, tenor de banheiro. Aplaudimos. Ele veio para nossa mesa, cantou tangos e boleros a noite inteira, recitou poemas, pagou a conta. Manhã cedo, fomos todos embora. No dia seguinte, vimos sua foto na primeira página da “Folha”. Era o delegado do DOPS. Se soubesse,teria feito um raspa baiano.

TORRES

A consagradora eleição do romancista Antonio Torres para a Academia Brasileira de Letras (34 votos entre 39) é uma festa baiana na alma de todos nós. Alguns o conhecemos desde seu primeiro começo. Em 1958, o “Jornal da Bahia” nascia, já lá estávamos Glauber Rocha, João Ubaldo, Muniz Sodré, eu, quando apareceu um magricela de 20 anos, discreto, sorridente, simpático e, logo logo saberíamos, ótimo caráter.

Vinha do Junco, tórrido sertão baiano, então distrito de Inhambupe, hoje Satiro Dias. Repórter de excelente texto, logo foi para São Paulo, onde em 65 o reencontramos na Agencia de Propaganda “Piratininga”, laborando de dia e à noite escrevendo. Quando percebia que alguns estávamos duros para o  almoço, levava-os para a “Churrascaria do Papai” ou o “Jandaia”, ali perto da “Folha”, e  escondido pagava a conta para não nos constranger. Na desgraça é que se conhecem as pessoas. E nem desgraça era. Só fome.

A OBRA

Em 1972 Torres estreou já com sucesso no primoroso romance “Um Cão Uivando para a Lua”. Deixou no seu lugar na agencia o Carlos Capinam e foi  para Portugal. De lá trouxe “Os Homens dos Pés Redondos” (1973). A partir daí, romances em cachoeira : “Essa Terra” (1976), sua obra prima, “Carta ao Bispo” (1979),  “Adeus Velho” (1981), “Balada da Infância Perdida” (1986), “Um Taxi para Viena d´Áustria” (1991), “O Cachorro e o Lobo” (1997),  “Meu Querido Canibal” (2000), “O Nobre Sequestrador” (2003). E outros, de contos e crônicas.

Lá de cima de sua colina, Senhor do Bonfim está batendo palmas.