Por Ricardo Cravo Albin –
“Foram dois homens de fé. O primeiro por exercitar a apetência permanente pela crença na filosofia. O segundo por exercitar a crença na comiseração pelos mais necessitados.”
No espaço diminuto de 48 horas, talvez menos, o Brasil perdeu dois pensadores que sempre arranharam a grandeza da fé. A cada perda que atinge minha sensibilidade pessoal, aliás, sou levado a refletir sobre a abstração mais poderosa com que pode se defrontar o ser humano, o poder da fé, do acreditar no que pensa, do ter sido útil a um número maior de pessoas. Sempre acompanhei Sérgio Paulo Rouanet com a maior atenção. Até porque, desde que exerceu o sacerdócio de seus ensinamentos públicos através de aulas magnas na ABL e de palestras em todos os lugares de excelência, bebi-lhe as lições, o que me fez certificar de suas qualidades de homem de fé, de crença inabalável nas ideias de seus filósofos predecessores.
Agora mesmo ocorreu-me memória estimável: um jantar na casa do casal em noite fria de São João Del Rei. Bárbara Freitag, esta grande intelectual e companheira de vida e de ideias de Rouanet, recebeu com a generosidade e largueza próprias dos antepassados alemães. Ao final da noite arrisquei-me a perguntar ao anfitrião, depois da conversa se desviar para o campo da necessidade de refletirmos com nós mesmos sobre certezas e incertezas da vida, sobre fé latu sensu, qual o lugar de cidade tão grávida de passado que ele indicaria como mais propício para meditar sobre assuntos tão solenes. Resposta fulminante – “Eu não sou consultor de sítios para melhorar pensamentos. Eu sou um filósofo por vezes atrevido. Mas como sinto em você essa fixação na fé, ousaria lhe recomendar uma igrejinha aqui ao lado, desde que esteja vazia. Sem padres e sem beatas. Só você a mergulhar na sua solidão e nos possíveis paradoxos.” Foi das melhores indicações que recebi em minha vida. A partir daí, visitei o casal sempre que pude no apartamento acolhedor do Leblon.
Já a falta que me fará Dom Claudio Hummes será nunca menor que a do Brasil por um dos seus pastores preferenciais. Conheci Dom Claudio ainda monge franciscano, levado a um jantar a ele oferecido por Lygia F. Telles e Paulo Emilio Salles Gomes para conhecer Glauber Rocha, cujo filme “Deus e o Diabo na Terra do Sal” impressionara vivamente o futuro cardeal, como poderoso grito de alerta. Ao longo do jantar, Dom Claudio, com simplicidade bem franciscana, teceu pacientes comentários sobre as injustiças que Glauber realçava no filme, confrontando-as com as que ele vivenciava em São Paulo. Muitos de nós quase chegamos às lágrimas com relato tão vivo quanto piedoso. De imediato, acolhi Dom Claudio no coração e passei a me comunicar com ele por cartas e telefonemas sendo-lhe algumas vezes talvez útil ao lhe indicar musicas populares que exaltavam a solidariedade e a necessidade de desvelar injustiças. Em especial, de que ele teria gostado especialmente, uma pequena coleção de Chico Buarque, incluindo Morte e Vida Severina. A que se seguiram Noel, Aldir, e até raridades de Adoniram.
Minha vontade, confesso aqui, seria ir ao velório na Catedral da Sé de São Paulo para me despedir deste grande homem. Mas seus assessores me dispensaram disso por telefone, horas atrás. A admiração que sempre lhe dediquei, me faz realçar o que o Papa Francisco ouviu dele em Roma horas depois de ungido Papa – “Não esqueça dos pobrezinhos de nossas grandes cidades como São Paulo e Buenos Aires.”
A dor de Francisco pela morte de seu eleitor e amigo bem se equipara a dor de todo o povo do Brasil.
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
Tribuna recomenda!
