Por Alcyr Cavalcanti

Para celebrar o centenário de Zé Ketti (16/9/1921, Rio de Janeiro, RJ – 14/11/1999, Rio de Janeiro, RJ), considerado um dos principais compositores de samba do país, confira a reveladora entrevista com o legendário portelense que começou ao meio dia e foi até as duas da madrugada.

“Eu sou o Samba, a voz do morro sou em mesmo sim senhor, quero mostrar ao mundo que tenho valor, eu sou o Rei dos Terreiros” (Zé Ketti)

A entrevista começou ao meio dia sob um sol de 50 graus, nos Arcos da Lapa e se estendeu até a madrugada nos bares  da Velha Lapa. Era uma Quarta-feira de Cinzas do ano de 1997 e havíamos organizado o debate “Roda de Samba” dias antes do Carnaval com vários sambistas da maior importância no Mundo do Samba. Mas faltava o maior de todos, José Flores de Jesus, o Zé Quietinho, o nosso querido Zé Ketti. A ideia partiu do querido Clovis Scarpino que conhecia tudo nos Morros Cariocas e formava comigo e com o cartunista Ikenga um trio de diretores que tinha a responsabilidade pela produção cultural. Para Scarpino era essencial uma entrevista com o mestre dos mestres o compositor de ‘Máscara Negra’ e ‘A Voz Morro’. Zé Ketti foi pontual, chegou no horário marcado, com impecável terno branco muito bem passado, em pleno meio dia com sol a pino acompanhado por sua filha Geisa Ketti, acompanhante fiel e querida que guiava com carinho todos os passos do pai. Começamos a sessão de fotos, foram tiradas mais de oitenta, em vários filmes  e só não tiramos mais porque o calor era intenso e exigia muito sacrifício do mestre.

Zé Ketti (foto: Alcyr Cavalcanti)

Alguns pivetes se aproximaram curiosos e perguntavam quem era o “velho de terno branco”?, mas alguns conheciam Scarpino que morava ali perto na Rua do Resende e foram dispersados para outras plagas. Após a sessão pictórica fomos nos abrigar em algum bar ou restaurante na Lapa de muitas histórias, para fugir do sol inclemente. Resolvemos, de comum acordo acampar no restaurante Ernesto e no trajeto, paramos em alguns pé sujos para beber alguma coisa e beliscar uns petiscos, nosso entrevistado a toda hora repetia como num mantra: “Estou com muita fome“, que motivava uma gargalhada geral, menos para Geisa, que morria de vergonha.

Enfim chegamos ao Ernesto, um oásis para escapar do calor escaldante. Fitas e mais fitas cassete foram gravadas, a maior parte do material foi perdido nas periódicas mudanças de diretoria do Sindicato dos Jornalistas. Felizmente guardei a maior parte dos filmes, sabia que ficariam para a memória da nossa cultura. A cidade maravilhosa, como é cantada em prosa e verso foi magnificamente retratada no filme de Nelson Pereira dos Santos “Rio 40 graus” de 1954, em seus contrastes, em suas paixões focalizada em cinco meninos favelados, vendedores de amendoim, em cinco cartões postais da cidade. Zé Ketti foi essencial na obra de Nelson, um dos precursores do “Cinema Novo”. É um filme de autor, Nelson fez a direção, argumento e roteiro enriquecido pela obra prima de Zé Ketti, “A Voz do Morro”. Durante a entrevista Zé se emociona ao lembrar das filmagens com Nelson, de quem se tornou grande amigo, amizade solidificada durante as filmagens, a equipe ficava baseada em um pequeno apartamento na Praça Cruz Vermelha, no centro da cidade. O apartamento também era um “aparelho”, visto que Nelson era quadro do Partido Comunista-PCB, com orientação centralista, e de início custou a aprovar a realização do filme, a direção achava uma ideia aventureira.

Zé Ketti prestigia o show de Maria Bethânia no Canecão. Atrás, Paulinho da Viola. Rio de Janeiro – Outubro de 1985 (Reprodução/arquivo Google)

Frank Justo Acker era o elo de ligação entre Nelson e sua equipe e o PCB. Mesmo com as filmagens Nelson não podia abandonar as reuniões e as orientações do Partido. Zé Ketti conta que ele e os outros também tinham a tarefa de distribuir o jornal do Partido “Imprensa Popular”, principalmente no Morro do Cabuçu, onde eram feitas as filmagens. Zé lembra emocionado, quase às lágrimas, o revezamento na cozinha do pequeno apartamento, e a rígida disciplina, com a divisão de horário e funções. “Quando chegava minha hora eu fazia um macarrão pra ninguém botar defeito, eles raspavam até o prato” dizia o Zé entre uma garfada e goles de cerveja bem geladinha. Muitas histórias foram contadas, muitos amores foram revelados (em off, com compromisso de não revelar) inclusive algumas pessoas da alta sociedade.

Nara Leão e Zé Ketti (Reprodução/arquivo Google)

Zé Ketti admite que seu pontapé inicial foi ter aceitado trabalhar com Nelson, de quem ficou um grande amigo e da sua participação no Teatro Opinião. Mas Zé Ketti iria seguir a aventura de continuar a formar um coletivo. Parte da equipe saiu da Praça Cruz Vermelha e foi para Botafogo. Nelson a mulher Laurita e filhos, Hélio Silva com a mulher e filho e o nosso Zé com a mulher, uma índia e duas crianças. O pão e o feijão eram divididos irmãmente enquanto havia a batalha contra censura para liberar o filme, considerado subversivo. Reuniões de protesto contra a censura foram feitas, inúmeras vezes, mas os censores estavam inflexíveis e citavam que na música que permeia a obra, a citação à macumba, em “Eu sou o Rei dos Terreiros” seria uma afronta aos cariocas, para Geraldo Menezes Cortes o censor, os cariocas eram predominantemente católicos. Muita e muitas reuniões para liberar o filme, inclusive com a interferência de Jorge Amado e de cineastas franceses e italianos.

Rio, 40 Graus (1955) – Divulgação

A Associação Brasileira de Imprensa fez uma Assembleia em defesa do cinema brasileiro. A conversa já durava algum tempo, eram seis horas, início da noite, e Scarpino avisa que a verba para o almoço  tinha acabado, mas era necessário continuar com ou sem dinheiro. Alguns sambistas ao avistarem o compositor vieram para a mesa e todos estavam com muita sede. Garrafas de cerveja, algum conhaque para rebater e continua a conversa. Sem dinheiro já havíamos pago parte do consumo, mas sabíamos que aquele era um momento único que não poderia terminar, por falta de capital. A solução foi pedir mais verba, que foi concedida após um belo esporro da tesouraria. Enfim às duas da manhã, terminamos a contragosto, não só nosso, mas também do Zé Quietinho, que devidamente protegido por sua filha lembrava a todo momento da saúde frágil de seu pai, que tinha ficado internado em um hospital em São Paulo há poucos dias atrás.

Zé Ketti (foto: Alcyr Cavalcanti)

Uma pergunta com insistência foi feita e sempre escamoteada, a maioria das vezes pela interferência da filha. Quem seria seu sucessor o compositor que seria o Rei dos Terreiros? Depois de muito relutar ele afirmou “Pra mim meu sucessor pode ser o Wilson Batista gosto muito desse menino” Assim disse o mestre para encerrar a noitada na Lapa.

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PS: Recomendo o Livro “Zé Ketti e suas andanças por aí”, escrito por seu genro Onésio Meirelles, tendo relatos de sua filha Geisa Ketti, o livro resgata a memória do genial sambista.

Geisa Ketti e Onésio Meirelles (Foto: Arquivo Pessoal)

Saiba mais: Tribuna LIVE com Geisa Ketti e Onésio Meirelles sobre Zé Ketti


ALCYR CAVALCANTI – Jornalista profissional e repórter fotográfico, trabalhou nos principais jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo e em agências de notícias internacionais. Bacharel em Filosofia pela Universidade do Estado da Guanabara (atual UERJ) e mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor universitário, ex-presidente da ARFOC, ex-secretário da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.