Por Lincoln Penna

“Filósofos interpretaram o mundo de diversas maneiras, mas o que importa é transformá-lo” (Karl Marx)

Há algum tempo as forças sociais vinculadas a movimentos sociais têm agido na periferia dos poderes constituídos, particularmente naqueles poderes eletivos, tais como o executivo e o legislativo, cujo eleitor o faz diretamente, uma vez que no caso do judiciário seus membros são eleitos pelos representantes do povo. Até um pouco mais de meio século a cidadania se expressava apenas e tão somente nos pleitos eleitorais, tal a carência dos movimentos sociais, que só se multiplicaram de uns tempos para cá.

Até o golpe de 64 os partidos políticos e os sindicatos tinham alguma influência, situação esta que foi sendo fragilizada a partir da adoção de uma política neoliberal. Os partidos têm perdido sua vida orgânica e os sindicatos perderam a força que detinham na intermediação com os governos e no confronto com o patronato, no caso dos trabalhadores assalariados. As legislações relativas aos partidos e, sobretudo, aplicadas aos sindicatos, haja vista o imposto sindical ainda sujeito à reavaliação do STF. Enquanto isso prevalece a última decisão que não contempla o imposto compulsório, o que tem reduzido significativamente o custeio das atividades sindicais. Em parte, e em alguns casos, essas perdas têm sido compensadas pelo vigor dos movimentos sociais que se multiplicaram ao longos dessas últimas décadas sem, no entanto, reparar as perdas desses dois organismos, ou seja, os partidos, principalmente os ideológicos, e os sindicatos.

Todavia, existe algo mais grave que requer prioridade absoluta. Trata-se do avanço continuado das tendências fascistas no Brasil, em especial. Ao desprezar o embate pelas vias legais e, portanto, constitucionais, o fascismo emprega preferencialmente a orientação que torna sistemática a via extralegal, de modo a criar pânico na sociedade e, com isso, inspirar o medo, que tem sido historicamente um forte aliado para os seus intentos totalitários. E a melhor forma de combater essa mais nova aparição fascista entre nós caminha por pelo menos três direções: o fortalecimento da unidade das forças democráticas e progressistas alinhadas a todas as formas e expressões antifascistas; o embate político e ideológico em todas as frentes e esferas, principalmente nas áreas da educação, cultura e informação; e, a construção de uma frente antifascista, que tenha por finalidade a denúncia do perigo do fascismo entre nós, daí a proposição de um Pacto de Unidade e Ação (PUA). Sua implementação deve ser feita antes que o fascismo ganhe ainda mais corpo e consiga atrair os incautos através de pregações sem fundamento, porém impregnadas de má fé no bojo de ações terroristas a fomentar a insegurança constante.

O PUA original foi concebido logo após João Goulart (Jango) assumir à presidência quando da renúncia de Jânio Quadros, em 1961. Era, como não poderia deixar de ser à época, uma reuniao de federações e sindicatos operários com pequena articulação no seio da sociedade civil. O caráter pouco massivo dessas entidades sindicais e a ausência de articulação com partidos da base do governo trabalhista e reformista de Jango conspiraram para o seu relativo fracasso. Claro que acrescido a esse fracasso a convicção que pairava no ar de que a possibilidade de um golpe contra o governo que assumia estava descartada. Convicção esta fundada também na falsa crença da absoluta legalidade dos militares.

Naqueles dias a ameaça fascista não se encontrava presente no cenário nacional, assim como não havia no plano internacional a existência de uma extrema direita fortemente atuante nos principais estados nacionais. Mesmo assim houve o golpe inspirado, como sempre, no anticomunismo, que tem sido igualmente usado pelas hostes fascistas atuais para granjear apoios das tendências de centro baseadas em uma ideologia conservadora e inclinada a adotar soluções extremas em face de perspectivas que venham a promover mudanças estruturais. É precisamente nisto que o fascismo serve, isto é, como instrumento regimental para solucionar as demandas que possam modificar as relações sociais de produção. Quando tal perigo ronda o capitalismo diante das pressões das massas populares, seus ideólogos se valem do expediente do totalitarismo como forma de impedir fraturas no sistema de poder.

As frentes antifascistas da década de 1930 não eram constituídas por forças sociais anticapitalistas, dado que a escalada do nazifascismo se fazia alucinante e era preciso deter o quanto antes. Uma frente unitária contra a ameaça fascista pode dispensar o concurso dessa condição, uma vez que o que se coloca como urgente é deter o crescimento dessa ameaça. No entanto, ao tornar-se mais regular e orgânico o seu funcionamento é possível que a associação entre o capitalismo e fascismo se faça, pois em sua fase mais agressiva o capitalismo por conta da crise que tem sido sistemática e o advento da solução fascista se conectam e, com isso, deixam visíveis a sua face gêmea. Esta irmandade inerente ao capital é pouco conhecida pela maioria das pessoas que ao se referirem a um ou a outro não fazem essa associação, ao imaginar ou simplificar o fascismo como se fosse uma mera ditadura, não compreendendo o seu caráter de dominação burguesa elevada ao ponto mais intenso de seu poder de mando.

É sempre oportuno destacar que o fascismo não se resume à implantação de governos repressivos nos quais se suprimem por inteiro as liberdades democráticas. O fascismo é mais do que isso.

Ele investe fortemente na repulsa a todas as formas de expressão e em todas as suas dimensões. Submete o indivíduo a mero expectador de seu desempenho alucinado em busca de um passado glorioso ou glorificado, ao mesmo tempo que censura toda e qualquer manifestação crítica, de tal modo que afeta diretamente as artes, o cinema, o teatro, a imprensa, a educação como formadora de cidadania, e impõe uma consciência única a traduzir exatamente aquilo que o estado sob a tutela do fascismo interessa que seja reproduzido. Torna, portanto, o indivíduo verdadeiro porta-voz de seus intentos.

Ao agir nas frestas da legalidade, o fascismo busca se emponderar junto as massas desiludidas, cansadas de esperar melhorias em suas condições de vida. O discurso corretivo, diretamente dirigido aos mais vulneráveis e dispostos a reverter sua situação de desamparo os torna aliados e esses acabam por ingressar docilmente nas fileiras fascistas, ou quando elas ainda não existem, são presas fáceis desse discurso geralmente raivoso. Logo, tornam-se reféns de um poder que irá levá-los de roldão para cumprir seus desígnios antidemocráticos.

O nosso imenso e desigual contingente social padece de muitas coisas, dentre elas a consciência de que suas necessidades lhes são subtraídas o que tem feito reproduzir a exploração social, cuja explicação que lhes são dadas referem-se a governantes mais ou menos competentes e chegados ao povo. A falta de consciência de classe e de suas necessidades tornam dificultadas toda e qualquer saída, salvo alimentar esperanças simbolizadas por salvadores da pátria, o que torna essa realidade ainda mais tormentosa para grande parte de nossa gente.

A trilogia conscientização, organização e mobilização aparece como um caminho a ser trilhado, e não é de agora que estamos buscando esse caminho. Perseverar é preciso, como preciso é também compreender que só irmanados todos os sedentos de justiça social poderemos chegar ao porto seguro das vidas que têm sido dizimadas pela miséria resultante de um modo de produção que nos leva a mais trágica das consequências, aquela que rouba nossas vidas. Unir a vontade de reciclar nossa existência, bem como fazer valer a força de reconstituir perdas históricas, mas que são capazes de serem integradas num mutirão impulsionado pelo governo que se comprometeu em unir e reconstruir o legado positivo de nossas lutas nos dá força.

No instante em que o governo Lula enfrenta as pressões dos agrupamentos que servem aos propósitos de uma extrema direita empoderada pelos resultados do pleito de 2022, e que se depara com armadilhas para inviabilizar seu governo, é inadiável pensar na implantação desse Pacto de Unidade e Ação. Ele tem a faculdade de ampliar e fortalecer os agrupamentos sociais, seja do mundo do trabalho ou do campo, muitas vezes esquecido nas conjecturas que nos levam a pensar em saída transformadoras para o país. É este tecido social esgarçado e pisoteado pelos donos do poder que precisa levantar-se. Esta é uma tarefa essencialmente política. Que cada qual faça a sua parte inteirando-se uns com outros.

Escrevi durante o processo eleitoral que o fascismo nos espreita. Ele está em toda parte e encontra terreno fértil para prosperar desde que não haja capacidade de enfrentá-lo e removê-lo de nossa realidade tão sofrida. Não permitir que esse sofrimento seja utilizado a seu favor depende de conseguirmos ser suficientemente sábios para desarmá-lo em seus objetivos inconfessos. Razão pela qual temos a nosso favor a argumentação fundada nas conquistas da humanidade, instrumento que não dispõe o fascismo a trabalhar como lhe convém, isto é, com a ignorância e a disseminação do ódio.

Esta é a sua arma e ela precisa ser enfrentada com inteligência, vigor e ciência.

***


AGENDA

https://www.oabrj.org.br/eventos/juizes-perseguidos-estado-direito

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


PATROCÍNIO

 


Tribuna recomenda!