Por Ricardo Cravo Albin

“A cegueira também é isso, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança.” (José Saramago em “Ensaio sobre a cegueira”)

Desde que me entendo por gente, há na última semana do ano uma sólida tradição de ler, dos simples cartões de Boas Festas aos artigos em crônicas de jornais e revistas, textos de esperança e de felicidades. Também me acostumei a escrever sobre a solidariedade que o Ano Novo deve representar. E não me acudo de que tenha chegado à última semana de um ano velho tão imerso em perplexidades e insatisfação. Desculpem-me. Mas esses sentimentos se potencializaram por uma inadmissível frase ontem emitida pelo Presidente da República – “Não dou bola sobre o Brasil se vacinar na lanterninha dos demais países, nem me sinto incomodado pelo fato de 40 países já estarem sendo imunizados, incluindo E.U.A e Europa”. E até latinos como México, Chile e Costa Rica. Tolice e desrespeito sem tamanho.

De imediato me ocorreu o título acima, a partir do livro Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, o único escritor em língua portuguesa a ganhar o prêmio Nobel de Literatura. E fique claro que a cegueira do Presidente não se nutre apenas por esta frase, antecedida por um provocador “ninguém me pressiona para nada.”

Não, o Presidente padece de cegueira desde o comecinho da pandemia ao negar informações à imprensa do número de vítimas, ao mesmo tempo em que viu o que não poderia ver, um remédio milagroso, a cloroquina. A cegueira prosseguiu em escalada ao apelidar a Peste de gripezinha, ao demitir, sem mais nem menos, dois médicos do Ministério da Saúde, e nomear um terceiro, um aparentemente pacato general sem qualquer intimidade com doenças. Prosseguiu a todo vapor quando as notícias mais esperadas pela humanidade se delineavam, a vacina salvadora – a não ser por ele, ninguém sabe o porquê do obtuso negacionismo. O mundo ameaçado deu-se às mãos em solidariedade histórica, sem isolar países por ideologia ou regime antagônicos, a não ser ele. Todos os dirigentes do planeta se somavam a OMS nas enérgicas medidas sanitárias de limpeza, máscaras, isolamento social.

As cidades abrigaram lockdowns e as escolas começaram a fechar em quase todos os países, cujo olhos arregalados eram capazes de ver os prejuízos gravíssimos à economia, aos empregos. Mesmo a contra gosto, baixaram a crista e abriram ainda mais os olhos.

O que fez nosso Presidente? Quando podia indicava aos prefeitos e governadores que abrissem tudo, a pretexto de salvar a economia, minimizando a pandemia. Mais um erro, comprovado agora pelos melhores economistas.

A turma da bajulação, como o prefeito aprisionado do Rio, cometeu a insanidade de abrir o que pudesse, inclusive estádios, assembleias religiosas e praias.

Enquanto isso, a partir dos feriados fatídicos de novembro instaurava-se no país a segunda onda. A imprevidência do Ministério da Saúde dormitava. Mas o País sabia que começava a se afundar em pântano espesso.

A agilidade e a disputa dos laboratórios mundiais, inclusive Butantã e Fio Cruz, minimizavam o horror dos sofrimentos e medos com a cada vez mais próxima vacina redentora. Mas o Presidente desdenhava. Os países sérios com óculos, até lupas, começavam a se preparar desde o comecinho armando parcerias cautelares, antecipando encomendas e se abastecendo com seringas, agulhas, refrigeradores e … muito planejamento prévio.

Enquanto isso (como nos quadrinhos do Chico Caruso) …, a cegueira nacional desdenhava de providências. O Ministério da Saúde coitado, parecia portador de óculos escuros e bengalas, uma legião de ceguetas.

Segundo um relatório da Universidade Duke (da Carolina do Sul) a situação se agudiza no confronto entre países pobres e ricos (estes reservando com antecipação as vacinas mais caras, as da Pfizer).

As informações do relatório abateram expectativas de bilhões de pessoas, sobretudo as mais pobres. A Universidade informou que os mais previdentes já contrataram as melhores vacinas e pagaram quatro bilhões de doses com antecedência acauteladora.

O Brasil teria anunciado a possível compra de 42 milhões de doses. Façam as contas com nossa população e comecemos a chorar. E cadê as encomendas de todo aparato paralelo como seringas e etc?

A Sociedade Brasileira de Imunizações (sim, existe!) declarou esta semana que o Brasil está atrasado e até agora não há nada concreto, tudo ainda na espera. Ai de nós, pelo andar da carruagem agregada a cegueira presidencial uma cobertura de vacinação no Brasil deve demorar.

Nessa altura, resta-nos entregar a Deus. Só Ele mesmo poderia ter soprado a Santo Agostinho uma reflexão irretocável – “tão cego são os homens, que chegam a se vangloriar da própria cegueira”.


RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin,  Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.