Por Carlos Mariano –

Um desfile à frente do seu tempo.

Numa manhã de segunda-feira ensolarada, do dia 13 de fevereiro de 1983, a Mocidade Independente de Padre Miguel adentrava a avenida Marquês de Sapucaí para defender um enredo inovador: “Como era verde meu Xingu”, assinado pelo genial artista Fernando Pinto.

Fernando Pinto, um dos gênios da folia. (Imagens: Reprodução)

O tema nacional nos enredos das escolas de samba é algo que está inserido no universo dessas agremiações carnavalescas desde dos primeiros desfiles, lá pelas bandas da década de 1930. Durante esse longo percurso, a grande maioria das escolas de samba se propôs a falar do Brasil a partir de uma visão de história adquirida no senso comum das aulas das escolas públicas. Na época, se privilegiava falar, sobremaneira, dos fatos históricos e suas datas, bem como dos feitos dos seus grandes vultos. Assim é que em todo esse período foi produzido os grandes sambas-enredos, cujo a subjetividade, o nacionalismo ufano e romântico constituíam uma espécie de essência dessas composições.

A partir do final da década de 1970, gradativamente, os enredos e sambas vão construindo leituras e narrativas novas sobre o Brasil. Colabora com esse fenômeno, a decepção do povo e setores da sociedade brasileira com os governos militares, que davam sinais de esgotamento. O ensejo por liberdade e democracia no Brasil vai trazer novos sentimentos do que é ser brasileiro e também novas interpretações intelectuais sobre a história do Brasil por parte dos artistas do carnaval – carnavalescos e compositores.

O saudoso Fernando Pinto tinha no tropicalismo, sua ideologia de interpretação da nossa história. Nessa narrativa, a valorização das coisas nossas são tratadas de forma mais despojadas e críticas, objetivando uma revelação do Brasil a partir da cultura e anseio do seu povo, e não mais do culto das grandes personalidades da política e cultura brasileira.

Depois de uma passagem apagada no Carnaval de 1982, na Estação Primeira de Mangueira, Fernando volta em 1983 para Vila Vintém para escrever um enredo original e contestador: “Como era verde o meu Xingu”.

A aparição dos povos indígenas nos enredos das escolas de samba carioca até o Carnaval de 1983, na maioria das vezes, foi na condição de coadjuvante da história colonial brasileira. Geralmente, estigmatizado na figura do índio ingênuo ou guerreiro, beirando a um personagem mítico – naquela época nem se usava o termo correto: indígena.

O nativo era sempre visto nos enredos ufanistas como uma figura do passado e que por lá ficou petrificado. Em “Como era verde o meu Xingu”, Fernando olha para o indígena e problematiza sua participação na história, como algo orgânico e presente na realidade social brasileira e na luta pela preservação da natureza. O enredo se posiciona na defesa da demarcação de terras do Parque Indígena do Alto Xingu e contra o ataque e invasão de especuladores financeiros, beneficiados pela omissão dos governos militares.
Original e ousado, o enredo levava em consideração que, embora combalida e em crise, a ditadura militar, representada no desastroso governo do ditador João Batista Figueiredo, ainda dava as cartas do jogo político brasileiro.

O grande samba-enredo tem a assinatura do quarteto de bambas: Tiãozinho da Mocidade, Paulinho Mocidade (foto abaixo), Dico da Viola e Adil. E foi Interpretado pelo saudoso e brilhante puxador, Ney Vianna.

Como Era Verde Meu Xingu - Paulinho Mocidade - LETRAS.MUS.BR

Na primeira parte do samba, os compositores narram, de forma solene e suntuosa, a beleza da região do Alto Xingu e os verdadeiros donos dessa terra: os povos Kamaiurá, Kalapalo e Kaikuru.

Vejamos:

Emoldurado em poesia
Como era verde meu Xingu
Sua fauna que beleza
Onde encantava o Uirapuru
Palmeiras, Carnaúbas, Seringais
Cerrados, florestas e matagais
Oh! Sublime natureza
Abençoada pelo nosso criador
Quando verde era mais verde
E o índio era o senhor
Kamaiurá, Kalapalo e Kaikuru
Cantavam aos deuses livres no verde Xingu
Ó morena morada do sol e da lua
Ó morena, o paraíso onde a vida continua

Nessa lindíssima cabeça do samba, os poetas descrevem com esmero e sensibilidade estética o paraíso idílico do Brasil antes da invasão portuguesa. Na segunda parte, os compositores transformam o samba numa ode à cólera do povo Xingu pedindo justiça social e demarcação de suas terras no tempo presente. Tal mensagem é também percebida na melodia e no ritmo do samba. Se na primeira parte, a melodia é mais suntuosa, calma e nostálgica; na segunda, ela é valente, aguda e forte. É como se estivesse declarando guerra ao homem branco, o invasor de suas terras.

Quando o homem branco aqui chegou
Trazendo a cruel destruição
A felicidade sucumbiu
Em nome da civilização
Mas Mãe natureza, revoltada com a invasão
Seus camaleões guerreiros
Com seus raios justiceiros
Os caraíbas expulsarão
Deixe nossa mata sempre verde
Deixe nosso índio ter seu chão

A Mocidade foi apenas a sexta colocada com esse enredaço no Carnaval de 1983, mas isso, pouco importa!

A escola foi aclamada pelo público que lotava as arquibancadas da Marquês de Sapucaí com os gritos de “É campeã!”. Além disso, ganhou o mais importante prêmio da imprensa carnavalesca: o Estandarte de Ouro do Jornal o Globo nas categorias enredo e comunicação com o público.

Olhando para os tempos atuais – quando o recém governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva cria o Ministério dos Povos Originários, tendo à frente a indígena Sonia Guajajara, para implementar um plano de regularização de terras indígenas, – nós podemos constatar o quanto de pioneirismo e originalidade tem esse belo enredo escrito e desenvolvido 40 anos atrás, em plena ditadura militar, por esse mito e um dos maiores artistas do carnaval moderno chamado Fernando Pinto.

CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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