Por José Carlos de Assis –
Endividamento imposto pela União e manipulação financeira da pandemia.
Antecedentes
Este trabalho, desenvolvido ao longo de três anos, tinha como foco exclusivo a dívida dos Estados junto à União, que a nosso ver se reverteram em créditos. Em seguida, tratou de créditos dos Estados, também junto à União, por conta de compromissos financeiros certos e definidos relativos a ressarcimento de recursos relacionados com a isenção de ICMS, pertencente aos Estados, no processo de aplicação da Lei Kandir. Essas relações se desenvolveram desde 1999. Paradoxalmente, os governadores não reclamaram seus créditos.
A dívida original aqui analisada, paga pelos Estados em diferentes datas desde 1999 e estimada atualmente em cerca de R$ 540 bilhões, é, tecnicamente, uma dívida nula. Ela decorreu de compromissos federais com o FMI para vender ou liquidar os bancos comerciais estaduais, num dos episódios mais clamorosos de centralização bancária ocorridos no país. Para viabilizar a privatização o Governo obrigou os Estados a concentrar suas dívidas mobiliárias em bancos privados, e, de forma totalmente irregular, pagou essas dívidas com títulos públicos federais transferindo o passivo “inventado” para os Estados.
Desenvolvimento
A irregularidade dessa criação das dívidas estaduais pode ser avaliada mesmo em termos intuitivos. O pagamento da dívida mobiliária dos bancos estaduais em títulos públicos federais deveria simplesmente quitá-la para todo e sempre. Os títulos federais são passivo de toda a sociedade, inclusive dos Estados, e funcionam como moeda. Uma vez usados para pagar as dívidas estaduais, não poderia haver um novo pagamento, bis in ibidem, imposto aos Estados sobre a mesma dívida. Como mencionado, descobri essa anomalia em 2017, do que resultou meu livro “Acerto de Contas. A dívida nula dos Estados”, Editora MECS.
Já nessa altura eu acreditava que não se tratava mais de apenas anular a dívida, mas de ressarcir aos Estados o que foi indevidamente cobrado. Isso equivalia a aproximadamente R$ 400 bilhões para o conjunto dos Estados, pagos ao longo dos anos, sendo que, para surpresa, o saldo remanescente arbitrado era da ordem ainda maior, de R$ 540 bilhões. Uma carga de pagamentos dessa ordem, acrescentado dos maiores juros do mercado, explica em grande parte a deficiência de recursos dos governos estaduais para investimentos de infraestrutura em saúde, educação, segurança e moradia.
Esperava que houvesse uma corrida dos governos estaduais endividados aos caixas do Governo federal para ver esse crédito. Entretanto, não houve. Suponho que, nos níveis técnicos estaduais, não existia ou existe pessoal especializado para enfrentar essas questões, sobretudo tendo em vista a arrogância dos funcionários federais que certamente reagiriam a uma revisão dessas contas. Tentei apresentar o projeto ao Consórcio dos Estados do Nordeste, mas também isso não funcionou. Tentei apresentá-lo a governos individualmente, mas nada. Tentei mobilizar funcionários estaduais para defenderem a tese, mas também não funcionou.
Está nas mãos de V. Exa. reparar essa grande injustiça contra os Estados e seus cidadãos espoliados. Entretanto, creio que já passou por suas mãos processos relativos ao ressarcimento por isenções de tributos estaduais. É o momento de reparar essa outra injustiça, esta derivada sobretudo de imposições descabidas dos funcionários federais aproveitando-se até mesmo da pandemia para estrangular os Estados. A Lei Kandir se origina no governo Collor para, supostamente, estimular as exportações de produtos primários. Como tratou de redução de impostos estaduais, previa que os governos estaduais seriam ressarcidos da redução.
O Governo Federal simplesmente renegou a Lei Kandir sem eliminá-la. Com isso, pagou apenas parcelas insignificantes do ressarcimento, esmagando uma base de recursos fundamental para os Estados. Hoje, o acúmulo da dívida da União por conta da Lei Kandir alcança algo como R$ 538 bilhões, de acordo com criterioso levantamento da Febrafite-Federação Brasileira de Fiscais de Tributos Estaduais. Somando isso ao ressarcimento pelo que foi pago nos negociações da dívida imposta a partir de 1999, constatamos que um crédito líquido e certo dos Estados junto à União alcança mais de R$ 1 trilhão 380 bilhões.
Em lugar de pagar, a União quer cobrar mais. E onde concorda relutantemente em dar algum dinheiro para os Estados, como no caso dos recursos que V.Exa. está conseguindo para bancar investimentos no período pós-pandemia, acrescenta exigências intoleráveis, impostas de forma autoritária e oportunista, neste caso se aproveitando da própria pandemia para ameaçar com um ajuste fiscal que, conforme exposto adiante, não só seria desnecessário como reverteria numa recessão ainda mais profunda da economia brasileira.
É certo que R$ 1 trilhão de reais aparenta ser muito dinheiro. Entretanto, somos 27 Estados e Distrito Federal, com direito a quantias que representariam uma fração do total. Além disso, somos 210 milhões de habitantes, vivendo em Estados e Municípios, usando sua infraestrutura de saúde, educação, segurança, moradia etc. Entretanto, mais importante que isso, é que o Tesouro não precisa de efetivamente gastar dinheiro resultante de tributos. Ele precisa apenas de emitir dinheiro eletrônico, depositado nas contas de todos os agentes que compram bens e serviços da União, e que precisam desse dinheiro da União para pagar impostos.
O fato é que nenhum país que tenha passado por recessão profunda, especialmente antes da onda neoliberal, saiu dessa situação gastando recursos tributários. Essa é a essência da Teoria Monetária Moderna, que se define por um aforismo simples: “Um estado que emite sua própria moeda não tem restrição financeira até o esgotamento de sua capacidade ociosa provocada pela recessão”. E dado que a economia parte de uma situação de recessão, não há, até o esgotamento da capacidade ociosa, risco de recessão. Além disso, se o aumento da capacidade gerar inflação, pode-se simplesmente aumentar os impostos.
Tivemos no Brasil há pouco tempo a visita de L. Randall Wray, uma das maiores autoridades do mundo em Teoria Moderna Moderna. Ligado ao Levy Institute de Nova Iorque, escreveu um livro seminal, que traduzi para o portuguesa sob o título “Trabalho e Moeda hoje”. Ele se baseia na teoria de Finanças Funcionais de Aba Lerner, que por sua vez se tornou o fundamento de políticas keynesianas de combate a recessões e depressões. O mundo, inclusive Europa Ocidental e Brasil, não precisaria passar por períodos tão prolongados de recessão se tivessem adotado essas teorias.
Antes de isso estar formalizado em teoria, o presidente Roosevelt, nos Estados Unidos, venceu a depressão dos anos 30 a partir de gastos públicos sem cobertura tributária, ou seja, déficits orçamentários. O mesmo aconteceu recentemente com o presidente Obama: ele usou déficits orçamentários, no momento de US$ 7,5 trilhões no decorrer dos anos de 2009 a 2014, para reverter a depressão de 2008. O que a economia norte-americana aproveitou de Trump, mas a ação anterior.
Penso que está bem assentada a possibilidade de retomada da economia pagando R$ 1 trilhão aos Estados, sem inflação. O Congresso pode aprovar, juntamente com esse crédito, um programa equilibrado de gastos pelos Estados, em tranches, por exemplo, de R$ 250 bilhões por ano. Além disso, para não haver uma distribuição legal de recursos em detrimento dos Estados mais pobres, de forma linear, mas injusta, o Congresso, que tem poder para isso, pode determinar uma elevação proporcional das receitas desses Estado de forma compensatória.
Creio que este projeto prova com evidências definitivas que o débito do Governo federal junto aos Estados, em lugar de desequilibrar o Tesouro, pode-se tornar uma poderosa alavanca para retomar a economia e recuperar a receita fiscal depois da epidemia do coronavírus. Se forem razoáveis, os funcionários do Tesouro entenderão essas relações e concordarão com seus fundamentos. Caso isso não aconteça, o Congresso pode convocar uma conferência urgente para estudar o assunto. Para isso, desde já, me ofereço para participar, junto com minha equipe, esperando contar também com a crítica do Instituto Fiscal Independente.
JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964. Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro. Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica.
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