Por Siro Darlan

O lawfare ou “guerra jurídica” se constituiu nos últimos anos em um fenômeno de grande transcendência, tanto pela generalização de seus métodos como por seu significativo impacto nas relações políticas, econômicas ou sociais e culturais no Brasil, em particular, e na América Latina em geral. Impostado dos EUA e do campo de guerra, foi transplantado para o campo jurídico como uma forma de destruir os inimigos de ocasião, de cor e de ideologias diversas.

Este conjunto de práticas e discursos, que consiste no uso de instrumentos jurídicos para a perseguição de magistrados, dirigentes e militantes políticos e sociais, tornou bastante vulnerável a gama de direitos fundamentais e das pessoas diretamente afetadas, o que, por sua vez cerceia o funcionamento do sistema democrático e cria condições da criação de políticas públicas de retrocesso que afetam a vida de milhões de pessoas em nosso continente.

Exemplos emblemáticos deste fenômeno se deu no Brasil com a derrubada de uma presidenta eleita Dilma Rousseff e com a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva; no Equador, com a perseguição judicial a Rafael Correa, e na Bolívia, com o golpe de estado contra Evo Morales.

Os presidentes Hugo Chávez (Venezuela), Evo Morales (Bolívia), Lula (Brasil) e Rafael Correa (Equador), em encontro na cidade de Manaus – ano 2008. (Crédito: Ricardo Stuckert)

A utilização do sistema judicial e legal dos Estados com a finalidade de concretizar políticas regressivas em matéria de direitos humanos não é uma novidade nesta região. São exemplos históricos, a reforma judicial introduzida na década de 1980 – que se compreendem no marco de delineações políticas desenhadas pelo governo de Washington, onde foram ajustadas quais seriam os treinamentos dos profissionais adredemente escolhidos para a aplicação das medidas de ajuste estrutural e desregulação do Estado, cambiando o formato das antigas invasões de território com armas e soldados. Sem dúvida o fenômeno da judicialização da política adquiriu na última década uma magnitude sem precedentes.

Na Argentina, alguns dos componentes tem profundas raízes históricas, o lawfare se converteu numa dinâmica estendida durante o segundo mandato da Presidenta Cristina Kirchner (2011-2915). Nesse contexto, parte da oposição, com o respaldo do aparato midiático concentrado, começou a utilizar o aparato judicial como espaço privilegiado para difamar os adversários/as políticos/as, entradamente dirigindo suas denúncias para supostos casos de corrupção e outras acusações de grande impacto na opinião pública, e desse modo a agenda política e o cenário eleitoral ficaram eclipsados pelas manchetes midiáticas. No Brasil ficou célebre a Globo mostrando um esgoto saindo dinheiro e induzindo a opinião pública para o campo da suposta corrupção generalizada.

Com a mudança do governo, assumindo a chamada Alianza Cambiemos, no final de 2015, a estratégia da “guerra jurídica” assumiu uma pratica sistemática, com o executivo de protagonista.

Coalizão conservadora Cambiemos (pronúncia espanhola: [kamˈbjemos]; espanhol para “Vamos mudar”) criada em 2015
Desenvolveu-se então puxado pelo Executivo um complexo trama de caça à oposição com alianças que envolveram alguns servidores do próprio judiciário, meios de comunicação, parte do empresariado e agentes de inteligência. Suas táticas foram desde hostilidades a dirigentes políticos, ex-funcionários/as e líderes de organizações sociais e sindicais, até as conduções coercitivas e prisões arbitrárias. Essas iniciativas foram orquestradas a partir de medidas concretas, como transferência de juízes para constituir tribunais de exceção e a perseguição a magistrados independentes, escutas telefônicas ilegais e extorsão contra empresários e dirigentes de oposição, a interferência de serviços de inteligência na Justiça Federal e o abuso da figura dos “arrependidos” para gerar falso testemunhos mediante mecanismos extorsivos.

Estou falando da republica dos “Hermanos”, a Argentina, mas podia dizer o mesmo da republiqueta de Curitiba ou do Principado de Resende, onde as práticas ministeriais foram as mesmas, com o requinte da participação de um delegado federal afeto às ações ilegais com o aparato do Estado.

O quadro em vários países latino americanos é o mesmo após a criação de crises que se sucedem, operando mais como condições eleitorais, como ocorreu no Brasil, onde um provável candidato líder em todas as pesquisas, foi alijado e preso para evitar levar à frente sua candidatura, utilizam-se de processos eleitorais, da agenda política e da opinião pública (deformada por um sistema midiático indutor) para agudizar as crises econômica e social. Ao mesmo tempo a utilização do lawfare constitui uma preocupação central e um foco de debates que interpela o Estado democrático, a organização da sociedade civil e uma parte do campo acadêmico a nível nacional e internacional.

É urgente que seja promovido um amplo debate público e acadêmico, analisando, não apenas o avassalador prejuízo à garantia dos direitos humanos fundamentais, assim como análise dos danos causados às vítimas diretas dessas ações deletérias e persecutórias, como propiciar o desenho e a implementação de políticas públicas com um claro viés de regresso histórico em matéria de direitos humanos, em especial no campo dos direitos sociais e culturais, econômicos e trabalhistas, que têm profundo impacto na vida dos mais humildes cidadãos e da sociedade em geral.


SIRO DARLAN – Juiz de Segundo Grau do Tribuna de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Diretor e Editor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Membro da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.