Por Ricardo Cravo Albin

“No Inferno os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise.” (A Divina Comédia – Dante Alighieri – 1265/1321).

O Inferno de Dante, a parte mais eloquente da trilogia A Divina Comédia (complementada pelo Purgatório e pelo Céu) parece ser a alegoria da pandemia no Brasil. Por várias indicações. A começar pelo pensamento escrito pelo próprio autor aí acima. De fato, Bolsonaro exercitou neutralidade em tempo de crise, negando a pandemia desde o comecinho, rejeitando medidas básicas de higiene que o mundo inteiro agregou aos hábitos de prevenção, preferiu abertura da economia que vidas. Portanto, a esse negacionismo sem pé nem cabeça agregaram-se mil e um outros disparates. Não carece aqui alinhá-los, por enfadonho e repetidos à exaustão.

Da inconsequência de profetizar a cloroquina como remédio-salvação à retirada de dois médicos do Ministério da Saúde para nomear um plácido General do Exército, supostamente especialista em logística, para encerrar a tragédia que batia às portas de hospitais saturados. O acúmulo de erros custou caríssimo, destruindo a economia e estimulando a perda de milhares de vidas. Tragédia que se potencializou nos últimos dias dentro do Inferno em que mergulhou a cidade de Manaus. O Presidente da República fez o que pode para satanizar lockdowns, abrir atividades comerciais, escolas e espaços públicos. O pior, dez vezes pior, ocorreria no despreparo e zero gestão para encomendar as quase 500 milhões de vacinas necessárias (duas doses por indivíduo). Também condenável foi a cegueira do Ministério, leia-se o Presidente, responsável direto como chefe, sobre a reserva e compra de insumos, frascos, seringas e agulhas, além de refrigeradores e respiradores. A nosso favor acresceu o fato de que o Brasil é referência mundial em campanhas de vacinação, já que logística e locais de aplicação são fixos e o suprimento a ser distribuído é mais simples, graças ao SUS.
Ainda assim, com tudo isso a favor, o plácido ministro e seu feroz capitão (“manda quem pode, obedece quem tem juízo”) conseguiram progredir aos trancos e barrancos. Mal feitos, de mais a mais, energizados pelas gafes diplomáticas jamais vistas no Itamaraty, provocando mal estar à China, Índia e Rússia, logo elas nossas aliadas no BRICS e fornecedoras de vacinas. Só agora, imploradas de joelhos. Finalmente conquistadas aos poucos, em especial a chinesa, por esforços pessoais do Governador de São Paulo. O que culminou, nesta semana, em constrangedor bate-boca entre Governador e Presidente.

Aliás, constrangimentos sequenciados pelo Procurador Aras ao tentar apurar culpas imputadas a Pazuello, liberando de responsabilidade o Presidente. Feio, muito feio.

O inferno, pois, está borbulhando. Em meio ao fogaréu dantesco começaram a chegar os primeiros aviões com as vacinas. Foram estabelecidos padrões de prioridades, a começar pelas centenas de milhares de profissionais à frente do campo de batalha. Um batalhão a consumir 70 milhões de unidades. Só que dispomos no momento menos que 10% disso.

Ao ser vacinada no Rio, a cientista da Fiocruz, Dra. Margareth Dalcolmo, declarou que a desorganização do país era criminosa. Seu protesto viralizou em todas as redes sociais ao receber o Troféu São Sebastião do Conselho Cultural da Arquidiocese, quando registrou o temor de que os atrasos das vacinas pudessem estabelecer caos de indisciplina.

O pior estaria por vir: as notícias mais temidas de que espertalhões estariam a furar a fila piedosa das prioridades. Nada mais nada menos que os ladravazes habituais a se locupletar de benesses públicas. – “Ah, tenho que vacinar também a mulher que amo”, o país ouviu estarrecido do fura fila inicial.

Quem vai garantir a sequência exigível e rigorosa das dezenas de prioridades? Como ficam os mais carentes, os marginalizados e os mais idosos? Não há governo, sequer moral, para exigir disciplina. E castigos exemplares aos bandidos.

Em conversa há poucas horas com minha velha amiga de Washington, Dra. Clarke, colega de trabalho do BID-anos 60, renomada cientista social amadora, expus-lhe o que estava a ocorrer aqui. Impiedosamente, ela pôs o dedo na ferida: “Você já se deu conta do Inferno de Dante ao se ampliar no momento em que as vacinas rarearem?”. Vi com clareza a distopia: a população, na certeza enganosa de ser vacinada a tempo e à hora, vai abandonar as medidas cautelares de proteção individual. A contaminação duplica ou até triplica. Isso já ocorreu pelo Natal e Réveillon de dezembro 2020.

O Inferno que Dante imaginou no mais contundente poema medieval se faz real no Brasil séculos depois (1.321-2021).

A frase do Canto III ao anunciar o Portal do Inferno se faz legítima – “Deixai fora toda esperança vós que entrais no Inferno agora”.


RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin,  Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.