Por Carlos Mariano –
No dia 19 de janeiro de 2023, Olivério Ferreira, conhecido no mundo do samba como Xangô da Mangueira, completaria 100 anos de existência, se não tivesse partido em 2009.
Xangô é considerado um dos ícones da história do carnaval e da cultura negra carioca. Foi também, ao lado de Mestre Fuleiro do Império Serrano, um dos maiores diretores de Harmonia dos desfiles de escola de samba. Ocupou esse destaque quando a Harmonia ainda servia para o “malandro” versar e improvisar um samba de partido alto, sem pestanejar, na frente de outros sambistas e confirmar, assim, sua patente de bamba da escola de samba. Era um mestre do improviso.
Xangô, Cartola, Carlos Cachaça e Saturnino Gonçalves formam o primeiro escalão do panteão de lendas da história da Verde e Rosa. O curioso é que Xangô da Mangueira não era mangueirense de berço, como o nome sugere. Aprendeu todos os ensinamentos e encantamentos do mundo do samba nas mãos de outro mito da negritude carioca: Paulo Benjamim de Oliveira, o inesquecível Paulo da Portela. É isso mesmo!
Xangô da Mangueira era portelense e aluno de Paulo da Portela. Participou dos primeiros desfiles da Águia de Oswaldo Cruz e saiu dela no início dos anos de 1940 com seu mestre. Isso ocorreu após desentendimentos dos bambas da Portela, da época, com Paulo. Haviam barrado seus amigos e companheiros da música, os mangueirenses Cartola e Heitor dos Prazeres, no desfile da Azul e Branco. O motivo teria sido não estarem trajando ternos nas cores da escola.
Após isso, ensinou a sabedoria do improviso para a rapaziada das escolas de samba Unidos de Rocha Miranda e a famosa Lira do Amor, escola do bairro de Bento Ribeiro. Xangô também circulou por vários redutos do samba carioca.
Na Verde e Rosa, Xangô foi iniciado no samba de improviso do morro pela paixão de uma cabrocha passista da escola, que caiu no galanteio do sambista. Em Mangueira, Xangô fez um teste para entrar na ala de versadores e improvisadores. Na turma dos que iriam aprová-lo, ou não no teste, estavam nomes de peso do jogo do improviso: Mário Nogueira, Jorge Zagaia, Padeirinho e Malvadeza. De cara, Xangô já mostrou suas credenciais, cantando seus sambas da rival Portela e novos e improvisados versos de partido alto como bom batuqueiro que era. Aprovado pelos bambas da Verde e Rosa, Olivério virou a partir de 1943, o terceiro diretor de Harmonia da Estação Primeira.
O primeiro diretor era nada mais nada menos do que Mestre Cartola e o segundo Mário Nogueira, amigo e parceiro de improviso de Xangô.
Durante os desfiles da Verde e Rosa nas décadas de 1940 e 1950, Xangô escreveu seu nome como diretor de Harmonia da escola, mas também foi se transformando em um dos maiores batuqueiro e partideiros do Rio de Janeiro.
Em 1972, Xangô gravou seu primeiro trabalho musical intitulado “O Rei do Partido Alto”. Nessa obra-prima, Xangô, em parceria com Jorge Zagaia, fez o samba “Diretor de Harmonia”, que define bem o que era exercer essa função nas escolas de samba nas primeiras décadas de desfiles na mítica Praça Onze.
“Sou eu o diretor de harmonia
Apito para entrar a bateria
Sou eu quem manda o Mestre Sala
Se apresentar com a Porta Bandeira
Se estou errado, me perdoa
Eu sou o samba em pessoa
Você já pensou
Quando a velhice chegar e eu não puder mais sambar”.
Fica claro nesses versos que, a partir da década de 1960, as escolas de samba e o carnaval popular começam a tomar o rumo da elitização e do branqueamento com a entrada da classe média, num processo rápido de transformação e de crescimento no número de desfilantes e seguidores.
Expressa ainda que ser diretor de Harmonia nos tempos da Praça Onze, significava ter atitude de defender no asfalto, durante o desfile, a essência do seu carnaval na avenida, que era o samba e sua comunidade.
As direções de Harmonia das escolas de samba nos tempos de Xangô na Mangueira, Mestre Fuleiro e Calixto no Império, Sete Coroas na Favela, Gargalhada na Depois eu Digo e Baiaco na Primeira Linha do Estácio representavam, nos lendários desfiles da antiga Praça Onze, um estado de espírito e disposição de cravar no asfalto, com muito suor e sangue, a sua identidade de sambista negro, que embora marginalizado e perseguido, tinha uma cultura e um ritmo contagiante para ensinar e perpetuar pela cidade.
Em depoimento para o documentário “Quando Xangô Apitar”, de Emílio Domingos e Gustavo Rajão, Xangô relatou que nos desfiles do seu tempo, não tinha uma ordem de apresentação, como atualmente. As escolas de samba chegavam na Central do Brasil e ali, concentradas e na espreita, ficavam observando outras concorrentes. Depois, partiam para o duelo final da Praça Onze. A que tivesse mais força e contingente escolhia o melhor momento para desfilar, impondo à rival a fila de espera. Nesse modelo dominante de desfile a figura do diretor de Harmonia era fundamental. Era ele que conduzia, com coragem e galhardia, a escola e seu povo na pista, e apresentava a principal atração do desfile: o samba de improviso. Nos primeiros desfiles das escolas de samba era apresentado dois sambas da sua ala de compositores e partideiros. Ainda não se tinha, nessa época, um único samba que contasse uma história no desfile, como nos dias de hoje. Xangô se tornou por muitos anos, o primeiro diretor de Harmonia de Estação Primeira de Mangueira. Foi ele que ajudou a consagrar a Verde e Rosa na avenida, como uma das principais e mais temidas escolas de samba do Brasil.
Xangô faleceu no dia 7 de janeiro de 2009 e nos deixou um enorme legado que transcende a fronteira do samba e do partido alto, mas que também representa a sabedoria dos trabalhadores negros emergidos nas lutas do chão das fábricas da Primeira República, para fazerem história no carnaval carioca.
CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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